domingo, 26 de outubro de 2014

Dois dedos de prosa


Não dá um texto, mas dá dois dedos de prosa:

1) Ouvi dizer que há uma nova safra de jovens escritores brasileiros bastante boa e fui atrás deles. Como, pela distância, não posso me dar ao luxo de ir a uma livraria e ficar lá folheando os livros até decidir, minha pesquisa se limitou ao folhear virtual mesmo, àquelas páginas que os sites de venda dão de lambuja ao consumidor, só pra sentir o tom. Acabei encomendando o Luiz Ruffato e a Eliana Pedrosa, que não são tão jovens assim, mas cujas histórias me pareceram bem escritas e não muito rasas. Confesso meu preconceito em relação à aclamada Fernanda Torres. Valeria a pena fazer seu livro atravessar o continente para afinal descobrir que não me acrescentou nada? Há uma cena descrita pelo pretencioso João Paulo Cuenca, de uma mãe dando de mamar ao filho, que me causou, no mínimo, uma irritação profunda. A solução, para mim, é voltar aos clássicos da literatura brasileira contemporânea: estou lendo O Lustre, de Clarice Lispector, seu romance menos lido e considerado o 'mais difícil', e me preparando para explorar as obras completas de João Cabral de Melo Neto. Será que não está faltando aos nossos jovens escritores voltar a eles também?!

2) Quando morei em Portugal, descobri que José Saramago, ao contrário do que acontecia no Brasil, era muito mais criticado do que idolatrado em sua terra natal, principalmente devido a questões políticas e ideológicas. O fato de ele declarar-se comunista e ter-se exilado na Ilha de Lanzarotte, Espanha, após a desclassificação de seu romance O memorial do Convento em uma premiação, sempre geraram uma certa implicância de senhores vestidos em terno até para dormir e de senhoras com penteados recheados de Bombril. O debate político estabelecido no Brasil recentemente me lembrou isso. Além de desfezar amizades, triplicar o número de blocs no Facebook e escancarar, mais do que nunca, o coitado do voto secreto, revelou posições e ideologias que, independentemente do lado escolhido, causaram a indignação de fãs fervorosos. Por que cargas d'água Chico Buarque continua apoiando o PT? Neymar afinal é Aécio? Não pode ser!, dizem os fãs, descabelados. Semana passada, assistindo a uma entrevista do Ziraldo na televisão, decidi que não quero nem saber de sua escolha nestas eleições. Porque vou sempre me emocionar ao final de O Menino Maluquinho, quando ele cresce e se torna um cara legal...


quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Não consigo escrever

The Letter Writer, Jean-Baptiste Greuze

Não consigo escrever. Há dias que não escrevo uma linha. A escrita, que antes já andava perdida, estagnou no meio do caminho.
Quem nunca passou por isso? A inevitável situação do cronista (não que eu seja uma) que, sendo obrigado a publicar diariamente no jornal, um belo dia não consegue.
Deve ser este andar à deriva uma das diferenças entre mim e um verdadeiro escritor - aquele que acorda todo dia sabendo que vai escrever e segue uma rotina rigorosa, com hora marcada e local definido.
Jane Austen, por exemplo, acordava cedo, antes das outras mulheres da casa, e tocava piano. Às nove, ela preparava o café da manhã para a família e depois se sentava na sala para escrever, geralmente com sua mãe e sua irmã por perto, costurando silenciosamente. Após o jantar, que ocorria entre as três e quatro da tarde, havia momentos de bate-papo, jogos de cartas e chá; depois todos liam novelas em voz alta e Austin colocava todos a par de seus escritos daquela manhã.
Victor Hugo também escrevia pela manhã, em uma pequena escrivaninha que ficava em frente a um espelho. Ele se levantava de madrugada, despertado pelo disparo de arma de um forte próximo, tomava café puro e lia a carta enviada toda manhã por sua amante, Juliette Drouet, que vivia nove casas abaixo. Depois de ler as palavras apaixonadas de “Juju” para o seu “Cristo amado”, Hugo engolia dois ovos crus e escrevia até as 11 da manhã.
Já Mark Tawain ia para o seu estúdio após um café reforçado e ficava lá até por volta das cinco da tarde. Ele não almoçava e ninguém ousava interrompê-lo, escrevendo ininterruptamente por horas. Se precisassem dele, tocavam uma campanhia.
Stephen king escreve todos os dias do ano, até mesmo no seu aniversário e nos feriados, e não se permite parar até que atinja sua quota de 2.000 palavras por dia, o que vai em geral das oito a uma da tarde. Depois ele tem o tempo livre para leituras, cartas, família e TV.
Franz Kafka trabalhava em um instituto durante o dia e morava em um apartamento com muitas outras pessoas, por isso só escrevia tarde da noite, quando todos iam dormir. Começava por volta das 11 e, dependendo de sua força, inclinação e sorte, continuava até uma, duas, três horas, tendo acontecido uma vez de ir até as seis da manhã.
Leon Tolstoi precisava escrever todo dia, sem exceção, não somente pelo sucesso de seu trabalho, mas para ter uma rotina. Segundo seu filho, ele trabalhava em isolamento: não permitia que ninguém entrasse em seu estúdio, e as portas das salas próximas eram trancadas para que ninguém o interrompesse.
Charles Dickens precisava de absoluto silêncio. Em uma de suas casas, ele mandou instalar uma porta extra para barrar o barulho. Sua mesa de trabalho deveria ficar de frente para uma janela e seu material de escrita (caneta tinteiro e tinta azul), ao lado de vários ornamentos: um pequeno vaso de flores frescas, uma faca para abrir cartas e duas estátuas, uma de sapos gordos em duelo e outra de um senhor rodeado de cães.
George Orwell trabalhava no período da tarde em um sebo em Londres, mas era ele quem abria a loja pela manhã, o que lhe era muito conveniente, pois ele aproveitava esse intervalo para escrever.
Por fim, Simone de Beauvoir escrevia sozinha durante a manhã, até a hora do almoço, quando se encontrava com Jean-Paul Sartre para o almoço. À tarde, eles trabalhava juntos, em silêncio, no apartamento dele. 
Essas informações foram publicadas recentemente na revista Shortlist, retiradas do livro Rituals: how great minds make time, find inspiration and get to work (Rituais: como grandes mentes organizam seu tempo, encontram inspiração e conseguem trabalho), de Mason Curry (2013).
Quanta dedicação, perseverança e rigor um grande escritor precisa ter para evitar os brancos que a mente lhes prega. Quanto a mim, enquanto minha escrita não volta, só me resta expor as rotinas de escrita desses grandes mestres, tentar aprender com eles e acrescentar aos seus rituais as minhas próprias manias.
E, assim, aquilo que era minha não-escrita acaba por se tornar, meio que forçadamente, alguma escrita.