quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Confusas estações

Four seasons, Luiza Vizoli

Essa energia primaveril que desperta no hemisfério sul nessa época do ano, em oposição à chegada do outono em terras do norte, onde me encontro, causa-me um inexplicável desconforto, uma certa sensação de deslocamento, uma dessintonia.
Verde, rosa e amarelo vibrantes. O azul do céu, sobre extensos gramados, águas transparentes e cristalinas - cenário perfeito para o desabrochar das pétalas, o inchar dos frutos, a brincadeira barulhenta dos passarinhos. O raio de sol toca a água do rio, criando um reflexo, um brilho que inebria e cega. Pele à mostra sentindo o acarinhar da brisa fresca e nova. Margaridas, tulipas, begônias. Peras, caquis, polpas suculentas. Desejo de ar livre, sol no rosto, borboletas.
Tudo isso é muito animador e, por meio das redes sociais, povoa meus pensamentos. Mas o que se vive por aqui nos Estados Unidos neste momento é a chegada de uma estação muito diferente. Novas  cores estão por vir - alaranjado, vermelho vinho, marrom, dourado. A cor sépia da fotografia envelhecida pelo passar do tempo. O céu muitas vezes cinza, o ar frio, exigindo já uma camada de lã sobre a pele. Galhos retorcidos, terra ressecada, folhas bailarinas em seu salto suave em direção ao nada. O aroma a abóboras, maçãs e especiarias se espalha por toda parte. Vontade de tomar leite com açúcar queimado, substituído, por pura conveniência, pelo leite insosso do Starbucks. Um desejo de recolhimento toma conta de todos, vontade de estar dentro, no aconchego do lar ou de um café, na companhia de um bom livro. 
A Primavera é uma menina ágil correndo pelos campos, molhando os pés no riacho, colhendo flores, cheia de atividade e muita vida pela frente. Suas pernas têm ânsia de movimento. Avançam sempre, sem parar. 
Já o outono é um idoso sentado no banco da praça, protegendo-se com seu cachecol, repousando os pés cansados de aventuras passadas, o olhar perdido e cheio de nostalgia, à espera do tempo, o seu tempo. 
A primavera é o encontro.
O outono é a despedida.
A primavera é o broto.
O outono, o maduro.
A primavera é o som do piano de Ludovico Einaudi
O outono é a voz de Frank Sinatra cantando Autumn Leaves (Folhas de Outono). 
Dois cenários que se misturam, desarmônicos, em minha mente… 


quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Terá sido o 9/11 obra de ficção?

As Torres Gêmeas, Banksy

Apresento dois livros cujos temas principais não são o ataque terrorista de 11 de setembro de 2001, que hoje completa 13 anos, mas que abordam essa temática de maneira tão especial que acabam por figurar nas listas dos livros sobre o assunto: Forever, de Pete Hamill, e Homem no escuro, de Paul Auster. 
Já escrevi sobre Forever aqui, mas esse é daqueles livros que jamais se esgotam em um único comentário. Para quem não se lembra, o romance conta a história do irlandês Cormac, que se muda para Manhattan no século XVIII e não consegue mais sair, sendo obrigado a viver na cidade para sempre. O dom da imortalidade, a ele possibilitado por estratégias fantásticas da narrativa, faz com que o personagem viva na cidade do século XVIII à contemporaneidade, assistindo a importantes períodos da História norte-americana, muitas vezes neles tendo participação ativa. Um detalhe que não comentei no post citado é que o ataque às Torres Gêmeas é decisivo em sua escrita. O próprio autor conta, em uma entrevista publicada no final do livro, que terminou de o escrever justamente no dia 10 de setembro de 2001. Entregou os originais ao editor e, no dia seguinte, estava planejando jantar em um restaurante tradicional da cidade para comemorar o término de tal empreitada quando tudo aconteceu. Ele, que havia narrado acontecimentos decisivos na história da cidade, não tinha outra alternativa a não ser adiar a publicação do livro e trabalhar nele por mais um ano para que pudesse inserir aquele que era um dos  acontecimentos mais marcantes da história. 
O personagem, que, a essa altura da narrativa, morava nas proximidades do World Trade Center e tinha uma pessoa próxima a ele trabalhando lá, desespera-se ao assistir, do seu apartamento, ao choque do primeiro avião contra o prédio e se dirige para o local, na tentativa de obter alguma informação. A partir daí, ele descreve o cenário de uma maneira bastante realista e coloca diante dos nossos olhos o quadro que se pintou: o medo, o barulho, o tumulto, a fumaça, a poeira, a procura, a dúvida, a incompreensão, o vazio, o caos. Duas imagens me impressionaram: a fumaça que se espalhou pela cidade e cujo cheiro se sentia dias depois e a massa humana atravessando a pé a Ponte do Brooklyn na voltar para casa, tendo em vista que não havia transporte público. A procura pelos desaparecidos também é chocante; o próprio Cormac reencontra a namorada dias depois, internada em um hospital, sem identidade. 
Enquanto Hamill mergulha de cabeça nesse fato nos últimos capítulos de seu livro, Paul Auster, em Man in the dark (publicado no Brasil pela Companhia das Letras em 2008, com o título de Homem no escuro), faz absolutamente o contrário: a mente insone de um senhor de idade cria uma história que se passa em um cenário em que a Guerra no Iraque não aconteceu, muito menos o ataque de 11 de Setembro. As Torres Gêmeas estão intactas, marcando presença absoluta e soberana no horizonte da cidade. No entanto, por outro lado, os Estados Unidos vivem uma guerra civil como nunca antes, consequência da eleição de George W. Bush, colocando em risco o sistema federativo da nação. O inimigo, nesse caso, não vem de fora; é o próprio país e as escolhas políticas de seu povo, levando-nos a refletir sobre os problemas da nação norte-americana sob um outro ponto de vista. 
Duas maneiras igualmente brilhantes de tratar um acontecimento de tamanha gravidade: explorando-o intensamente, para viver o luto e aliviar a dor; ou negando-o totalmente, para imaginar a sua não existência e, assim, avaliar a grandiosidade do ocorrido. Duas excelentes leituras!

PS: Para mais sugestões de livros e filmes sobre o 9/11, vá aqui e aqui. Em inglês e mais atual: aqui. Boas leituras!! 

Com o sol a brilhar

Desenho de Kenny Wang, 8 anos de idade

Recentemente, quando perguntada pelo fotógrafo do site Humans of New York sobre qual foi o momento mais feliz de sua vida, uma mulher respondeu que tinha sido um jantar na companhia de sua filha no restaurante que ficava no topo do World Trade Center. 
Aquele que fora objeto de um dos maiores ataques contra a vida humana já ocorridos, relacionado sempre a tragédia, destruição, pensamentos negativos e às piores sensações, foi lembrado por alguém como o cenário do momento mais especial de sua vida.
Quantos outros momentos como esse, felizes, engraçados ou interessantes, não se passaram no WTC? 
Em seu projeto, o arquiteto Minoru Yamasaki já o descrevia como a representação da crença na humanidade, da necessidade humana de dignidade, da crença na cooperação e na bondade.
Sua construção, em 1963, significou a revitalização da parte baixa de Manhattan, o impulsionamento do comércio e dos negócios em uma área antes em franco declínio.
No discurso de inauguração, em 1973, o WTC foi apresentado como um sonho tornado realidade, transformando-se no símbolo do progresso e do futuro.
A sensação de vitória e o sonho de prosperidade com certeza tomaram conta dos primeiros que abriram suas firmas ou foram trabalhar lá.
Sendo as Torres símbolo de conquista e superação, inspirou muitas aventuras. Três paraquedistas saltaram do topo. Em 1974, o equilibrista Phillippe Petit passou de uma torre à outra através de um fio de arame, trazendo imensa atenção popular para as Torres Gêmeas. Em 1977, George Willig burlou a segurança e escalou uma das Torres, realizando essa façanha em três horas em meia. Ao alcançar o topo, policiais o esperavam, mas tal feito com certeza lhe trouxe alguma fama e uma enorme sensação de liberdade (além de uma multa bem salgada para pagar). 
Um remake de King Kong, em 1976, tem as Torres Gêmeas como marca. O pôster de divulgação  mostra o macaco sobre os prédios, com um pé em cada torre, e o Empire State Building, protagonista da primeira versão, mostrado bem pequeno, ao fundo.
Além desses fatos extraordinários, quantos outros acontecimentos comuns, felizes e decisivos, não se passaram no local? Muitos encontros, daqueles que mudam uma vida toda, devem ter ocorrido lá - entre amigos, namorados e casais. Dentro daqueles escritórios, quantas amizades não foram conquistadas? Muitas risadas entre camaradas e confidências entre amigas devem ter se passado lá. Quantas decisões pessoais não devem ter sido tomadas, modificando as vidas de famílias inteiras? 
Um decote mais ousado para chamar a atenção daquele colega que estava sempre no elevador à mesma hora. Paqueras, pedidos de casamento… Muitos buquês de flores entregues… 
O restaurante Janelas do mundo deve ter sido palco para muitos desses momentos especiais. Comemorações, promoções, parabéns. Houve casamentos nas dependências do World Trade Center. Dezessete bebês nasceram lá. Será que algum foi feito lá?!
E os observatórios, que mostravam vistas esplendorosas da cidade, quantos sonhos e promessas não devem ter inspirado?
Muitas crianças devem ter vivido o glorioso dia de ir trabalhar com o pai naquele lugar único. A Plaza, área aberta cercada pelos prédios do complexo, também foi muito frequentada por pequenos viajantes e moradores, que buscavam descanso nos bancos ao redor da fonte.
Quantos abraços, beijos, olhares, mãos dadas, carinhos? Não sei, mas, neste dia em que se completam 13 anos do ataque às Torres Gêmeas, em 11 de setembro de 2001, gosto de pensar que momentos felizes se passaram ali.


King kong 1976 movie poster.jpg

terça-feira, 2 de setembro de 2014

A biblioteca de Gisela



Certa vez, ao nos mudarmos de casa, além de umas ratazanas que andavam por lá, encontramos um sabonete pela metade, uma cortina velha, um vaso de flor vazio, uma fotografia 3x4, uma caixa de revistas antigas e - por mais difícil que seja de acreditar - uma pequena biblioteca. Isso mesmo: em um dos quartos, bem no fundo, à esquerda, havia um quartinho suspenso, uma espécie de sótão, na verdade um aproveitamento do vão da escada, repleto de livros. 
Visto de fora, com a porta fechada, parecia um armário qualquer, mas bem mais alto e mais fundo. Para alcançar qualquer coisa, tínhamos de entrar no espaço usando uma escadinha de três degraus, de madeira clara, que parece ter sido confeccionada especialmente para esse fim (era exatamente da altura que ia do chão à porta). Dentro, estantes por todos os lados. O teto era bem baixo - cabiam no máximo duas pessoas sentadas, encolhidas. Uma lâmpada lateral iluminava as leituras e aquecia bastante também, chegando às vezes a ser insuportável. Chamávamos o pequeno quadrado de “o buraco” - apelido bem pouco simpático tendo em vista o conteúdo.
Não me lembro do momento em que descobrimos o esconderijo e da primeira vez em que entrei nele, mas sei que, durante toda a minha adolescência, eu passava muitas horas lá dentro, arrumando e desarrumando tudo, desvendando os mistérios revelados por aquele tesouro. Havia muitos livros escolares, do ensino fundamental, que de certa maneira foram úteis nos meus estudos, mas também muita literatura, principalmente a infanto-juvenil e os clássicos da literatura brasileira. Li boa parte deles e sei que esse buraco contribuiu em muito para a relação que tenho hoje com os livros. Antes de morar nessa casa, eu já gostava de ler, mas havia poucos livros em casa. Depois disso, não consigo mais me lembrar da minha vida sem a presença dos livros e a visita constante a bibliotecas e livrarias.
Esse buraco dizia muito sobre os antigos moradores da casa. Com certeza, eram pais que compravam livros para os filhos, que valorizavam a leitura ou pelo menos apoiavam os projetos escolares (nessa escola lia-se bastante). Uma das filhas era a jovem Gisela. Lembro-me claramente de sua caligrafia infantil, do nome redondo e gordo estampado em etiquetas nas capas, seguido da série escolar. Gisela 2º ano. Gisela 4º ano. Além das histórias contadas nos livros, eu acompanhava também a história de vida dessa menina, companheira de leitura nas longas tardes juvenis, encolhidas as duas naquele cantinho mágico que nos levava para mundos encantados.
Quem diria que, em um país de poucos leitores, isso seria possível – um espaço como esse, totalmente atípico, recheado de livros, deixados de presente para o novo morador? Por que não os teriam levado consigo? O fato é que nós poderíamos ter jogado tudo no lixo (infelizmente, em nosso país, muitos o fariam) ou doado para uma biblioteca, mas, de certa forma, minha mãe também tinha consciência da importância deles em nossas vidas e lá os manteve, para a minha alegria. Foi lá também que guardamos os poucos livros que tínhamos e os que viríamos a adquirir, e o buraco tornou-se oficialmente a biblioteca da casa. 
A vida segue, somos obrigados a mudar de casa, de cidade, de país e a deixar para trás parte da nossa bagagem. Talvez, em minha próxima mudança, assim, meio displicentemente, eu deixe cair um livro da minha estante, que ficará esquecido por um tempo. Será uma lembrança ao próximo morador (Quem sabe não contribuirá para construir a sua história?) e uma homenagem à Gisela, que me deixou de presente o seu tesouro literário.