segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Pães de saudade



Recentemente, decidi que já tinha passado da hora de eu, mineira orgulhosa e expatriada, aprender a fazer pão de queijo. Expatriada, nesse caso, significa ser obrigada a comer uns pães de queijo falsos mundo afora e principalmente estar sempre desprovida dos ingredientes mais comuns a essa iguaria: polvilho doce ou azedo, queijo Minas, ovos caipiras e, no meu caso, experiência.
Munida de força de vontade, teimosia e gula, lá fui eu pesquisar os melhores substitutos. Sim... não tem jeito... tem que se conformar em substituir os componentes da receita. O polvilho não é o mesmo, queijo parmesão não é queijo Minas (Ah... mas não é mesmo!!!), ovo comum não é o caipira. Outra alternativa seria fazer como minha cunhada, mineira muito mais autêntica do que eu, de sotaque inalterado, que, quando também vivia fora, certa vez quase foi presa pelas autoridades aeroportuárias por portar uma grande quantidade de um pó muito branco, de origem duvidosa. Custou pra ela convencer o senhor mal encarado e de má vontade que aquele composto era inofensivo, item de necessidade máxima para o mineiro que vive fora e que seria utilizado apenas em âmbito familiar, para amenizar as saudades da terrinha e dos cafés da tarde em família. É viciante sim! Mas isso o senhor emburrado não precisava saber...Como sou mais tímida nesses assuntos de alfândega, decidi encontrar os substitutos. 
Pesquisa vai, pesquisa vem, depois de perguntar a conhecidos e indagar chorosa ao mestre Google, comprei, muito a contragosto, um tal de ‘almidón’, dito substituto do polvilho, além do bendito queijo italiano e uns ovos gigantes que não costumam ter gosto de nada. Ah, decidir qual receita usar também foi uma luta. Uns escaldam (aquecem o leite e óleo), outros não; uns misturam tudo, outros vão por partes; uns sovam, batem muito na massa, outros só misturam... Houve até uma senhora no Youtube que descaradamente usou a batedeira. Ué, mas não tinha que sovar até doer o braço? Decidi usar a receita que minha irmã detalhada e pacientemente me passou por Whatsapp. Separei os ingredientes, os coloquei em cima da bancada da cozinha, fechei a porta (uma experiência como essa não dá pra compartilhar com as crianças), respirei fundo e comecei.
Despejei o ‘almidón’ na bacia, aqueci o leite com o óleo, coloquei lentamente a mistura líquida sobre o meu falso polvilho e fui misturando com a colher de pau, pensando na possibilidade enorme de aquele grude não dar certo e ter de ir pro lixo. Deixe esfriar, disse minha irmã. Enquanto esperava e misturava aquela farofa branca (acho que é assim mesmo que tem de ser), uma calma estranha foi tomando conta da cozinha. Que silêncio! Admirei-me de que as crianças não abriram a porta de repente para perguntar o que eu estava fazendo e pedir para ajudar. Nem o marido resolveu entrar de supetão pra indagar em que gaveta estava o recibo da escola do mês de dezembro de 1998. Nada me roubava a atenção. A concentração necessária à minha primeira tentativa de fazer pão de queijo estava até então preservada. 
Pronto, esfriou bastante. Já posso colocar os ovos. Um a um! E pra misturar, tem que ser com as mãos!! O primeiro ovo deslisou para dentro da bacia e fiquei logo tentada a quebrar a gema. Senti a textura viscosa e fria em minhas mãos. Uma explosão de cor amarela sobre o branco. Mais um ovo, as cores a se misturarem, o dourado da gema mesclando-se com a brancura pegajosa, que ia aos poucos se transformando em uma mistura mais homogênea. O silêncio... Minhas mãos a pintar aquele quadro de girassóis iluminados. 
De repente, uma sensação estranha... Uma presença foi-se tornando cada vez mais forte ao meu lado.  Uma voz fina, aguda, de mulher, se ouvia bem próxima aos meus ouvidos, e eu podia mesmo sentir suas mãos habilidosas a guiar as minhas na tarefa secular da sova. Primeiro as pontas dos dedos a destruir a perfeição molenga da gema, depois a mão inteira a mesclar tudo em movimentos circulares, quase uma dança, até não se ver mais a cor amarelada, e por último a força das mãos, já quase o punho, a amassar vigorosamente a poção que mais tarde se transformaria nos pãezinhos dos meus sonhos.
A partir daquele momento, eu não estava mais sozinha, tampouco estava na cozinha da minha casa. Uma força mágico-sensitiva me transportou para uma época dourada, mais de 20 anos atrás, e eu era agora uma menina de uns 13 anos, assistindo minha tia Eudalina a preparar a massa dos seus deliciosos pães de queijo. Ali estava eu, como inúmeras outras vezes, ao seu lado, na cozinha de sua casa, a observar atentamente suas mãos grandes a sovar, a sovar e a sovar. Eu não prestava atenção a nada daquilo naquele momento, nem me passava pela cabeça a possibilidade de no futuro querer fazer aquela receita, apenas queria provar a iguaria e também deixar-me estar, ficar ao seu lado, ouvindo sua voz terna, sentindo-me protegida por seu corpo alto, envolvida nas histórias de família que ela tão bem conhecia, encantada com seus cabelos lisos cor de prata e com a tiara fina que sustentava os fios de seda.
Eu não aprendi nada sobre pães de queijo naquelas tardes longas, calmas e aconchegantes que eu passava na casa da minha tia, mas, voltando à fria cozinha da minha casa, agora bem longe no tempo e no espaço, percebi que eu já sabia como sovar a massa do pão de queijo. Eu sabia fazer isso, sem nunca ter feito antes! E segui, com a maior propriedade, amassando, integrando tudo, misturando o amarelo da gema com o branco úmido e morno do polvilho, bem devagar porque não queria que o dourado se diluísse ao ponto de não ser visto mais. Tampouco queria que a magia do momento acabasse logo. Que privilégio esse encontro! Nunca pensei que uma simples experiência culinária me levaria para perto da minha tia querida, aquela que teve um papel tão importante em minha vida, que cuidava de mim quando minha mãe viajava, que fazia chá de camomila para o lanche da tarde, que costurava vestidos de gala, que tinha em seu quarto uma cama de princesas para as visitas, que em seu Fusquinha branco sempre nos levava pra ver a bandeira brasileira ser hasteada em frente ao Palácio do Planalto e que certa vez levou uma 'cambada' (era assim que ela se referia às pessoas, à 'galera') pra ver a Seleção de Romário e Bebeto desfilar no Eixão após a conquista da Copa.
Mas é hora de parar, deixar a massa descansar por algum tempo, remoer essas memórias há tempos adormecidas. Depois, tem que enrolar pacientemente as bolinhas, com as mãos besuntadas de óleo, lambrecadas daquele grude, e vê-las crescerem dentro do forno, o coração aquecido pelas lembranças de infância.
Não, meu pão de queijo não resultou muito bom. Descobri que, além do queijo e do polvilho, os ovos daqui não são os mesmos dos de lá – desbotados, não tingem de alourado as bolinhas depois de assadas. Ficou pálida, insossa e grudenta a minha experiência. Mas a alma, essa sim, acabou dourada, leve, radiante, acrescida de magia, conforto, memórias e sobretudo de saudade, muitas saudades.



terça-feira, 12 de abril de 2016

A crise roubou a poesia





Ninguém tem dúvida de que a atual crise política brasileira nos tirou alguns elementos essenciais, como o bom senso, a educação, a capacidade de raciocínio e de diálogo, o direito à opinião, a mudar de opinião, entre outros. Ter uma posição política divergente da do outro, nos dias de hoje, é cometer um crime hediondo, correndo o risco de, com um só clique, ser bloqueado raivosamente da vida do outro, para nunca mais.
Mas qual não foi a minha surpresa quando me dei conta de que a crise roubou também a poesia. Sim!! A poesia! De maneira sorrateira, mas nem por isso menos violenta, acabou com ela, deu fim, empurrou-a para um buraco negro do qual não sei quando poderá voltar.
Tenho o hábito de diariamente visitar sites, blogs e páginas de literatura, mais precisamente de poesia. É algo que me faz bem, me completa, adiciona vida, beleza,  emoção e – por que não? – conhecimento ao meu dia a dia. Como é bom abrir o Facebook e, além de notícias dos amigos distantes, fotos da família, alguma piada de futebol e notícias do Brasil, encontrar os versos dos meus poetas favoritos, um poema novo de escritores consagrados ou dos novos, análises teóricas ou mais emocionadas daquele poema famoso, além de novidades do mundo cultural e literário!
Nos últimos meses, porém, essa minha diversão favorita  passou a ser frequentemente interrompida por uma enxurrada raivosa e dilacerante de mensagens de teor político-partidário. Vários poetas, escritores e administradores de páginas sobre o universo literário começaram não só a postar suas opiniões políticas e a defender com unhas e dentes seus salvadores da pátria, como também encheram seus espaços virtuais de xingamentos, ironias e desaforos.
Uma das minhas páginas favoritas era de uma artista que consegue (quase escrevi o verbo no passado, mas vou deixar no presente porque ainda tenho esperança) como ninguém aproximar a poesia das pessoas. Na sua voz, os textos ganham vida, se tornam tão mais interessantes... Pois ela parou de fazer o que faz de melhor, dar vida à poesia, e, nos últimos meses, limita-se a comentar sobre política. Outro escritor que aprecio recomendou as páginas de três poetas, afirmando que era uma delícia acompanhar seus posts, repletos de poemas e mineirices. Fui verificar: uma não tinha atualizações há meses e nas outras duas não encontrei poesia; somente impaciência, ideia fixa e intolerância em relação a quem tem posição política contrária à dela. Claro que não curti: a página nem a postura.
E veja bem: não é que postem poesias que tratem da situação político-econômica do Brasil. Não! Isso é coisa muito diferente e seria positivo, necessário até, afinal a arte e a literatura sempre foram um meio de reflexão e crítica sobre a realidade em que vivemos. O problema é que deixaram de postar poesia!  Preferem explorar a temática urnas eletrônicas, apartamentos e cozinhas de luxo, supremos tribunais federais, números de manifestantes nas ruas, mortadela, tubaína, camisas da seleção, presidentes, juízes e ex-presidentes, ministros, bandidos e população, filhos da puta, coxinhas e petralhas. Foi nisso que algumas das minhas páginas favoritas se transformaram! Num emaranhado de xingamentos e obsessões políticas de baixo nível.
O poeta apressado vestiu a camisa vermelha do PT ou a verde-amarela do resto do mundo, não importa, saiu correndo desembestado empunhando sua bandeira rota e desbotada, atirando paus e palavrões dos mais xulos pra todo lado e, com seu dedo em riste, cheio de ira e molhado de cuspe, posicionou-se do seu lado do muro da verdade, apontando, com seu olhar julgador, para o grupo oposto e proferindo palavras de ódio e desprezo.
Só não percebeu um detalhe, o coitado... É que deixou caído, esquecido, bem lá atrás, em meio à poeira e às pisadas arrogantes da manada, o seu caderno de poesia. Aquele... de capa bem velhinha e amassada, com folhas amareladas, que ele carregava sempre consigo, cheio de rabiscos e rascunhos, para que nunca deixasse escapulir o verso que subitamente brotasse em sua mente enquanto passeava tranquilamente por entre as rosas vermelhas do jardim...
Que pena! O poeta esqueceu a poesia. Deixou pra trás o verso, a rima, a metáfora. Não importa a sua ideologia, preferiu a realidade dura, nua, crua e hipócrita, o palavrão, a ofensa, o verbo rasgado e cheio de ira.
O poeta deixou que a crise roubasse seu bem de maior valor: a capacidade de ver o mundo, mesmo que o mundo nefasto da política brasileira, através da lente fantasiosa, terna e muito mais agradável da poesia.