segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Projeto: Drummond



Recentemente, ao passar os olhos pela estante, à procura do próximo livro, encontrei a obra poética de Carlos Drummond de Andrade, em três volumes, a mim oferecida pela minha amada amiga Bete, no meu aniversário de alguns anos atrás. Os três livros tinham se deixado ficar ali escondidos, adormecidos, à espera, pacientemente. É claro que Drummond sempre esteve presente em minha vida (mesmo sem sabermos, ele nos acompanha a todos), porém, naquele momento em que reeencontrei os livros, tive a consciência de que eu nunca havia realmente lido toda a obra de Drummond como tem de ser, do início ao fim, categoricamente. E decidi iniciar esse projeto.
Sentei-me solenemente (é preciso muita solenidade para começar um projeto de tamanha amplitude), peguei o primeiro volume e comecei a observar atentamente a capa, com um Drummond já homem feito, a pele ainda lisa, os cabelos mais escuros, mas já calvo, usando óculos, terno e gravata. Percorri as informações técnicas iniciais linha por linha,  passei os olhos pela descrição dos volumes seguintes (já antecipando o que vinha pela frente), li o título do primeiro livro publicado pelo poeta, Alguma poesia, dedicado a Mário de Andrade, e alcancei o Poema de sete faces, com palavras conhecidas de todos: "Quando nasci, um anjo torto/ Desses que vivem na sombra/ disse: Vai, Carlos, ser gauche na vida". Eu sequer sabia que esse tinha sido o primeiro poema publicado por ele, mas gostei da sensação boa de familiaridade ao encontrar esses versos. 
Esse sentimento de proximidade com a obra não passava, porém, de uma ilusão, pois, à medida que fui avançando, percebi que eu realmente não havia lido Drummond. Ao lado daqueles textos que sabemos de cor, porque repetidos à exaustão, estampados nas camisetas, há muitos outros menos ou nada populares (pelo menos para mim) que transformam a leitura dessa obra em uma constante descoberta. Como eu poderia pensar que conhecia a obra de um homem que escreveu por praticamente todo o século XX, incessantemente? É um mundo novo que se revela a cada verso, a cada página, e que nos leva por uma viagem pelo tempo e pelo mundo interior do poeta, este que trata de sua cidade natal, Itabira, como se estive falando do universo.
Um aspecto, não presente nas camisetas, me surpreendeu: a tristeza, a melancolia, a negatividade que permeiam muitos dos poemas. Essa pessoa que escreveu “eu não sabia que a minha história/ era mais bela que a de Robinson Crusoé” (que me fazem pensar em uma vida de sonhos infantis) pensou versos como “Perdi o bonde e a esperança”e “O hábito de sofrer, que tanto me diverte,/ é doce herança itabirana”, os quais revelam uma visão negativa do mundo, de si mesmo e de suas origens. O livro Sentimento do mundo está repleto dessa aura, seja nos títulos (Tristeza do império; Menino chorando na noite; Congresso internacional do medo), seja no corpo dos poemas. Os ombros suportam o mundo é de um pessimismo voraz: “Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus./ Tempo de absoluta depuração/Tempo em que não se diz mais: meu amor./ Porque o amor resultou inútil./ E os olhos não choram./ E as mãos tecem apenas o rude trabalho./ E o coração está seco.” Em A noite dissolve os homens, um cenário de guerra, morte e sangue é descrito na longa primeira estrofe. Em alguns casos, vislumbra-se a esperança, mas voltada para o futuro, porque o real, o agora é, na maioria das vezes, amargo, terrível, desanimador: “Dentro de mim,/ no fundo de mim, o grito/ se calou, fez-se desânimo.”
Percebi então que o meu projeto começava a falhar já nos primeiros poemas do primeiro volume. Como eu poderia pensar que ler Drummond se faz assim, dessa maneira, de um só fôlego? Seus poemas, todos eles, são de uma profundidade, de uma riqueza, de uma variedade temática tão intensa que ler rapidamente, em alguns dias, significa simplesmente não ler. Um poeta que acompanhou a evolução do século, escrevendo compulsivamente, intensivamente, tem de ser lido devagar, de mansinho, saboreado, dando tempo para a digestão tanto das amarguras quanto das doçuras. Eu diria que um poema por dia é o suficiente, para depois relê-lo no dia seguinte e só depois passar ao próximo, degustando cada verso com prazer, fazendo o máximo esforço para que a leitura continue por muito tempo ainda, quem sabe pela vida toda. 
É isso! Ler Drummond, na verdade, é um projeto para a vida inteira.  

terça-feira, 19 de agosto de 2014

As capas dos livros também contam histórias

No post anterior, apresentei os significados das capas dos livros para o reconhecido designer americano Peter Mendelsund, segundo o qual esse elemento gráfico, além de proteção, pode ser uma espécie de pele, moldura, talismã. Como prometido, hoje comento aqui algumas das minhas capas favoritas. 

Confesso que não foi fácil escolher, principalmente pelo fato de que a maioria dos meus livros não puderam me acompanhar nesta longa viagem (ficaram no Brasil, sob os cuidados da minha irmã). Tive de recorrer à única estante a que tenho direito em casa e à minha falha memória. Também tive dificuldades para definir o que realmente motivou a minha seleção: se a capa propriamente dita ou se, na verdade, o conteúdo dos livros, a relação que tenho com os autores, o todo. De qualquer maneira, vamos lá!


Este é o primeiro livro de que tenho lembrança em toda a minha vida. Com certeza eu já havia lido muitos outros antes dele na escola, mas curiosamente  foi este, a mim apresentado pela minha mãe, que mais me marcou. Numa daquelas tardes entediantes, em que eu reclamava de não ter nada para fazer, ela me deu um exemplar de O menino do dedo verde, de Maurice Druon (José Olympio Editora), que andava perdido pela casa e sequer sei como foi parar lá. Outras edições vieram depois, com capas mais coloridas, mais apelativas visualmente, mas é dessa que me lembro: o verde intenso do fundo contrastando com o branco da flor enorme brotando do polegar. O personagem principal, o menino Tistu, filho do dono de uma fábrica de canhões, transformava em verde, a cor da esperança, e em flores tudo o que tocava. 




Meu pai não estudou para além das séries iniciais, mas era daqueles que se deixavam levar pela lábia dos vendedores de livros que vinham bater à porta da nossa casa. Além de enciclopédias, ele comprou para os filhos essa preciosidade: a coleção completa de capa dura do Monteiro Lobato, da editora Brasiliense. Antes mesmo de eu existir, esses livros de capa vermelha com letras douradas e uma simpática florzinha no canto superior esquerdo e na lombada povoavam nossa casa. Lembro-me de colocá-los em ordem crescente, para depois bagunçar tudo de novo e voltar a ajeitar. Histórias da tia Nastácia eram o meu volume preferido, que li e reli inúmeras vezes. Depois de muitos anos, infelizmente, os volumes foram se perdendo, meus irmãos levaram alguns para suas casas e não sei mais o paradeiro da coleção.





Este é uma lembrança do tempo da escola: O menino maluquinho, de Ziraldo (editora Melhoramentos), um dos livros infantis mais lidos no Brasil há décadas. Não tem como esquecer essa capa, que não mudou muito com o passar dos anos: a figura do menino com uma panela na cabeça, terno e sapatos desproporcionais emprestados do pai, olhinhos espertos e sorriso feliz, sob o traço inconfundível de Ziraldo. Até hoje, ao ler esse livro para as minhas filhas, tenho vontade de chorar no final, quando o menino cresce e se torna um homem legal. 




Os livros da coleção Vaga-lume, da editora Ática, como  O mistério do cinco estrelas, O escaravelho do diabo, O menino de asas, A ilha perdida, Spharion, Éramos Seis, com certeza marcaram a infância e a adolescência de muita gente. São inesquecíveis as capas coloridas, dramáticas, cheias de ação e mistério. Um pouco pesadas para o meu gosto atual, mas sem dúvida fizeram parte de muitos dos meus sonhos e medos infantis.






A série Bom Livro, da editora Ática, marcou toda uma geração de leitores. Os clássicos da literatura brasileira me foram apresentados por meio dessas capas pretas, cujas ilustrações de gosto um pouco duvidoso contribuíam em muito pouco para aguçar minha imaginação em relação às narrativas, mas fazem sim parte da identidade das obras e da imagem que tenho de muitos desses autores. Quem não se lembra do rosto em mosaico de Machado de Assis na contracapa ganhando a cor dourada aos poucos, simbolizando talvez a nossa entrada gradativa no enredo e colorindo nossas vidas com o que há de melhor na literatura nacional?






A Odisseia, de Homero, uma das primeiras obras da literatura ocidental, foi também a primeira obra da minha vida universitária. Essa capa, da editora Cultrix, marcou muito essa fase, pois, durante todo o primeiro semestre, eu andava pela Universidade de Brasília para cima e para baixo com um exemplar desses, chamando a atenção de alguns curiosos que se aproximavam exclusivamente para comentar o livro. Além de ser linda! Essa cor turquesa sobre o fundo branco gera um resultado muito elegante, marcado também por uma das cenas dessa epopeia que conta as aventuras de Ulisses em sua  volta para Ítaca após a Guerra de Troia. 




Em uma agradável noite, eu, minha mãe e meu irmão Marcos percorríamos os corredores largos da feira do livro de Brasília, quando, de repente, os três volumes das Obras Completas de José Saramago brilharam diante dos meus olhos. Foi paixão à primeira vista! Um pequeno grande dilema se formou: à vista, parcelado, caro demais, nós ajudamos, eu pago a segunda parcela, e eu a terceira. Conclusão: dormi naquele dia abraçada aos meus tesouros, com um sorriso imenso nos lábios e Blimundas, estorninhos e penínsulas navegantes a velarem meu sono. E não é que capa vermelha e o dourado lembram a coleção de Monteiro Lobato, em uma versão mais rebuscada?



A capa do livro Memórias inventadas, de Manoel de  Barros (editora Planeta), é literalmente um presente para os leitores. Trata-se de uma caixinha de papelão em cor parda, com os dados essenciais e a ilustração de Martha de Barros, filha do autor, sob fundo branco. Dentro, está o livro cuidadosamente amarrado com uma fitinha de cor alaranjada. Esse esmero na apresentação é ímpar e, aliado à beleza dos versos desse que é um dos maiores poetas brasileiros, faz com que seja uma capa inesquecível. 





Confesso que não gosto de capas que tenham imagem associada ao personagem principal (pois me forçam a pensar no personagem daquela maneira) nem daquelas com uma foto do autor a pousar como se dissesse: "Olha, fui eu quem escrevi este livro, viu?!" Mas esta de Lunário, do escritor português Al Berto, é toda ele próprio - chega a ser um assinte essa face tão exposta, tão à mostra -, mas as cores em sépia, a tonalidade meio envelhecida, o olhar puro, terno e angelical (nada parecido com sua personalidade), os cabelos encaracolados, enfim toda a composição transforma o que seria uma ofensa em delicadeza. Essa superexposição, presente em várias das capas dos seus livros, na verdade é intencional, artística e relaciona-se com o caráter autobiográfico de sua literatura. Gosto muito do resultado, assim como de todos os dessa editora portuguesa, a Assírio & Alvim.



Esta capa, do mais recente livro do poeta português Herberto Helder, A morte sem mestre (Porto editora), à primeira vista parece não ter nada de especial. Até eu saber de uma curiosidade: a de que o autor - um daqueles escritores reclusos, conhecido apenas por uma foto antiga, que vive escondido de tudo e de todos em um lugar distante, recusando-se a aparecer na mídia - pois esse autor sempre encapa seus livros com papel de embrulho castanho e escreve o título e o nome do autor de próprio punho, com caneta vermelha. Foi justamente isso que a editora tentou reproduzir na capa, o que a torna especial para mim. É como se, ao saber desse detalhe, aquele homem misterioso se deixasse mostrar um pouco e me contasse um segredo sobre si jamais antes revelado em sua poesia. Como se não bastasse,  trata-se de uma edição única, lançada este ano e já esgotada. 




Por fim, este livro que é o meu trofeu! Uma edição especial desse longo poema de José Saramago, O ano de 1993, ilustrado por Graça Morais (editora Caminho). Eu já tinha lido essa obra em outros formatos (até mesmo nas Obras Completas acima comentadas), mas não sabia da existência dessa edição. Até que, por acaso, ao vasculhar uma livraria daquelas bem tradicionais de Lisboa, quase um sebo de tão antiga, encontrei essa preciosidade. Não conheço ninguém que tenha um exemplar como esse (talvez a professora Hilda Lontra), por isso secretamente imagino que este seja o meu livro raro. 



Esse exercício de encontrar algumas das capas mais marcantes para mim foi riquíssimo. Em princípio, não foram as capas que vieram à minha memória, mas o título e o autor, além do conteúdo do livro. No entanto, observá-las, reavaliá-las, reencontrar algumas depois de tantos anos foi uma experiência enriquecedora, prazerosa e cheia de emoção. Em um primeiro momento, eu não conseguia me lembrar dos livros da minha adolescência, justamente uma fase em que eu lia incessantemente, às vezes um livro por dia. Quando recuperei as coleções da editora Ática, foi como a conclusão de um quebra-cabeça. E rever tudo isso significou sobretudo o reencontro com momentos, pessoas, fases, da infância à vida adulta. Foi na verdade uma maneira de fazer uma retrospectiva da minha própria vida. 

Espero que tenham gostado, que minhas capas favoritas tenham ao mesmo tempo trazido boas lembranças a vocês, mas também inspirando novas e boas leituras!
E você? Lembra-se de algum livro com uma capa especial, que te traga boas lembranças?