sábado, 26 de setembro de 2015

O sorriso do Papa





Ontem fui ver o Papa Francisco no Central Park, em Nova York. 

O que eu vi?

Vi uma multidão a andar a passos lentos, muito lentos, durante mais de três horas, em uma fila infinita que se movia em zigue-zague, debaixo de sol, até chegar ao parque.

Vi um brasileiro que ficou umas duas horas com a mão direita estendida em direção ao céu azul, a exibir três bandeiras que bailavam ao ritmo do vento – a brasileira, a americana e a do Vaticano. Depois o braço se cansou, ele guardou as bandeiras e, mais tarde, foi obrigado, assim como muitos outros, a gentilmente entregar os bastões para um segurança que os passou recolhendo. Se pau de selfie não era permitido, pau de bandeira também não.

Vi muita gente jovem, senhoras idosas bem vestidas, casais apaixonados, mães com filhos pequenos em carrinhos de bebê, pais com bebês recém-nascidos e uma menina peruana de uns seis anos vestida com roupas típicas do seu país, sempre a brincar com duas minibandeirinhas do Vaticano, cujos bastões eram inofensivos canudinhos. Que bom que estes não foram recolhidos pelo segurança! 

Vi um esquema de segurança acima de qualquer suspeita: a tão criticada cerca de dois metros de altura em torno do Central Park, um incontável número de policiais por todos os lados, helicópteros da polícia a sobrevoar a área todo o tempo, agentes do serviço secreto, detector de metais e uma vistoria das bolsas e sacolas super cuidadosa, sendo que todos os aparelhos eletrônicos deviam estar ligados, até mesmo as máquinas fotográficas, com as quais os seguranças tiravam uma foto para se certificar de que não explodiriam.

Dentro do parque, vi um manto de pessoas a cobrir as pedras e o verde já desbotado do início do outono, algumas sem ter a menor ideia de para onde ir, outras sentadas ou deitadas pelos gramados a ler, a comer ou a conversar, sozinhas ou em grupo, e aquelas aglomeradas próximo à cerca de isolamento perto do caminho por onde o Papa passaria, com cara de daqui-não-saio-daqui-ninguém-me tira.

Vi muitos americanos, mas vi também que a América é latina: ao meu ver, pelo menos cinquenta por cento das pessoas que ali estavam eram de alguma parte da América do Sul. E se orgulhavam disso, gritando em espanhol expressões de exaltação às suas origens e de identificação com o Papa Francis, como carinhosamente é chamado pela comunidade latina - Francis com sotaque espanhol, claro, que é igual ao português.

Vi uma mulher filipina a segurar, além de terços e santinhos, duas fotografias: uma dos seus cinco filhos, vestidos elegantemente com ternos azuis; outra dos seus pais e irmãos, reunidos em torno de uma mesa farta e florida. Esses não puderam estar presentes, mas receberiam também as bênçãos do Papa, pelas mãos daquela mãe, filha e irmã amorosa. Outra senhora expressou o seu pesar por não tido a mesma grandeza e lamentou ter pensado apenas em si mesma naquele dia. Nesse momento, orei pelas minhas duas filhas e pela minha mãe.

Vi também o brilho nos olhos das pessoas nos minutos que antecediam a chegada do Papa. Todos estavam tão felizes, numa animação sem tamanho que as fazia conversar com estranhos, compartilhar olhares cúmplices e sorrisos e até as mais tímidas a dar pulinhos de excitação.

De repente, vi um mar de mãos e braços se levantarem diante de mim, com suas câmeras, tablets e flashes a dispararem alucinadamente, tentando registrar o momento mais esperado. Sim! Pope Francis tinha chegado, estava lá diante de todos, muito perto, a uns quatro metros de mim, mas eu só via cabeças, mãos e máquinas, a tapar a maior parte do meu campo de visão.

Em três segundos, tudo já tinha acabado. O Papa já tinha passado, já tinha ido embora. Só restava a multidão de vinte mil pessoas que ficara mais de cinco horas esperando e que agora lá estava, parada, a olhar ansiosamente para as suas câmeras na esperança estas tivessem registrado alguma coisa.

A senhora que estava ao meu lado – aquela que se sentiu mal por não ter trazido a foto dos familiares – olhou para mim e disse: “Não vi nada, absolutamente nada.”

Eu, que na hora h também estava de braços estendidos e com o dedo pousado no botão da câmera, pronta para disparar, não consegui fotografar nada, nadinha (a não ser um pedaço de céu azul). No entanto vi, por meio de uma pequena brecha, vi, durante um segundo, não mais do que isso, o rosto do Papa Francisco: o semblante sereno, iluminado, a sorrir, olhando para a multidão de olhos mecânicos a fotografá-lo. Sim! O Papa, sentadinho em seu papa-móvel, sorria, com aquela carinha boa de pessoa simples e do bem. Ele sorria. E nunca mais vou me esquecer daquele momento, do seu rosto calmo e sereno, a sorrir.



PS: Ao sair do parque, espremida no meio da multidão, me sentia um pouco mal pelas pessoas que não tinham visto nada, absolutamente nada. Sem querer, li o que a mulher na minha frente postava nas redes sociais: “os dez segundos mais emocionantes da minha vida”. E pensei: Já valeu a pena então!



sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

As últimas palavras




“Afinal, talvez ainda vá escrever outro livro.”, registrou José Saramago em suas anotações de agosto de 2009, pensando no que seria o seu Alabardas, alabardas, espingardas, espingardas, livro inacabado, publicado pela Companhia das Letras no final de 2014.
Mesmo sabendo que a empreitada não passaria de algumas dezenas de páginas, o leitor apaixonado pela obra deste que é um dos maiores escritores da língua portuguesa escuta essas palavras como se um milagre fosse. O milagre da realização do que antes parecia impossível – o prazer indescritível de correr novamente à livraria (sim, até há muito pouco tempo não existiam as livrarias virtuais, muito menos a pré-venda, que deixa reservado na nuvem o exemplar antes mesmo de ele ser lançado), pegar o mais recente livro do autor preferido, aguardar ansiosamente pelo local e momento ideais (solenes o suficiente, dada a grandiosidade do objeto), abri-lo cuidadosamente na primeira página e deliciar-se com as primeiras palavras escritas por aquelas mãos sagradas.
É claro que sempre se pode reler as obras de Saramago como se fosse a primeira vez. Sentidos diversos e surpreendentes não faltarão. Mas o ineditismo do seu novo livro, a leitura virgem, primeira, as inúmeras possibilidades que neste momento se abrem, tudo isso é como reviver. Ressuscitar. Não o autor, que este não morre nunca; o leitor mesmo, que renasce e se revigora totalmente diante do prazer absoluto do momento.

O homem chama-se artur paz semedo e trabalha há quase vinte anos nos serviços de faturação de armamento ligeiro e munições de uma histórica fábrica de armamento conhecida pela razão social de belona s.a., nome que, convém aclarar, pois já são pouquíssimas as pessoas que se interessam por estes saberes inúteis, era o da deusa romana da guerra. Nada mais apropriado, reconheça-se.

Aí estão, logo no início, algumas marcas características do autor. A curta descrição do personagem principal (afinal não é em prol dessas convenções narrativas que o autor escreve), interrompida logo pela informação histórico-mitológica e pelo juízo crítico (Pois... esses saberes outrora valiosos tornaram-se inúteis), além da temática, que já se revela social e atual - a fabricação e o comércio de armas.  
Para aqueles acostumados à linguagem e ao ritmo narrativo do autor, a história desse homem (o homem, sempre o homem!) que vai em busca de um passado humano e transgressor da fábrica de armas vai-se desenvolvendo de maneira muito rápida, assustadoramente veloz. E em pouquíssimo tempo, tem-se a consciência de que faltam apenas poucas páginas, poucas linhas, poucas palavras. O reencontro com a escrita desse autor tão único, tão absolutamente fascinante, tão consciente do tempo cruel em que vivemos começa a chegar ao fim. A voz desse que foi um dos poucos homens contemporâneos a ter coragem de falar o que tem de ser dito está prestes a se calar, levando consigo o seu leitor, acordado do sonho.

, Para lhe falar francamente, tudo me parece demasiado, eu aqui sentado, eu a procurar documentos no arquivo, eu a falar com o adminstrador-delegado da empresa, eu um simples chefe de faturação menor, sem ofício nem benefício, Ofício, tem, não se queixe, Nada que outra pessoa não pudesse fazer

E segue-se um vazio, um silêncio devastador, antecedido do que não chegou a ser suficiente para saciar o desejo do saudoso leitor e seguido de um branco absoluto, angustiante. Essa última unidade de sentido do texto não chega a ser finalizada. O diálogo fica inconcluso. Que mais se diria, por quantas linhas se estenderia, até se atingir o ponto final? O que mais caberia nas páginas, nos capítulos seguintes?
E por que ele teria parado um diálogo que ainda não parece estar terminado justamente nessa fala? O esperado não seria concluir pelo menos a conversa para depois fazer uma pausa e tratar de outros assuntos? O que se passou com o José no momento em que ele decidiu interromper a escrita ou foi levado a isso, levantando-se de sua cadeira, afastando-se o suficiente para não mais voltar ao texto? O vento mais forte que obrigou a fechar a janela? Pilar a aproximar-se carinhosamente chamando para o almoço? Um certo cansaço ou a necessidade de esfriar a cabeça?  O cão que veio em busca de um afago e o desconcentrou? Na verdade, nada disso importa, apenas a certeza do silêncio, de uma página em branco que não pôde ser preenchida e jamais será.
A nós, leitores, nos resta o prazer infinito da releitura, a aprendizagem contínua extraída de tantas lições e a lembrança  do aperto de mão após o autógrafo tão esperado.




sábado, 24 de janeiro de 2015

Mãos dadas



Nos primeiros minutos da oração da noite de Natal, todos reunidos, colocados em círculo, de mãos dadas, percebo-me em uma situação especial. Olhos fechados, suspiros profundos, palavras sagradas a fugir automaticamente dos nossos lábios, me dou conta de que minhas mãos seguram, à direita, a mão da minha filha menor e, à esquerda, a mão da minha mãe. 
A mãozinha fina e delicada não compreende ainda muito bem o significado daquele momento, mas sente e está totalmente entregue, tal é a firmeza com que segura a minha mão. A mão grossa e trêmula da minha mãe, cansada, fraca, mas confiante e segura de sua função de matriarca, da força de suas orações, pronuncia agradecimentos pelos presentes e pede bênçãos pelos ausentes.
Somos agora a santa trindade temporal: os dedinhos pequenos, macios como algodão, com tão pouca vida, mas cheios de vitalidade, a carregar nas veias estreitas o peso da história por conhecer; meus dedos finos e compridos, um pouco ressecados, mas maduros, a compor ainda a sua biografia; e os dedos gordos, hesitantes e maduros dessa mãe, dessa avó que leva nas veias grossas e escuras o livro de toda a nossa vida. 
Essas texturas representam o meu passado – a mão que me segurou assim que eu nasci, me deu banho, costurou meus vestidos de criança, me estendeu o primeiro livro, deu palmada quando necessário, apontou o dedo grave do conselho; o meu presente – a dádiva da possibilidade desse encontro entre a que me gerou e a que eu dei à luz; e o meu futuro – a expectativa de ensinar aos filhos da filha aquilo que minha mãe me ensinou.
Naqueles minutos sagrados, enquanto todos pronunciavam o cântico milenar, uma emoção enorme toma conta do meu ser. Consciente da minha posição central nessa tríade, uma corrente vital passa por mim. Sou, neste momento, o  ponto de convergência dessas energias distintas, tão diferentes, mas ligadas por um laço indestrutível. Sou o elo entre o passado e o futuro. Sou o centro do universo. 
Amém.