domingo, 3 de junho de 2018

O voo do bordado





Malas prontas: coração apertado.
Em poucos minutos, sai o carro que me levará novamente para longe do meu país, da minha família, da minha mãe.
Respiração acelerada, mãos frias, nervosismo, ansiedade. Verifico que nada está ficando pra trás, dou as últimas ordens às meninas e me sento à mesa, ao lado de minha mãe. O momento deveria ser só de espera. Faltam poucos minutos para a hora combinada. Poucas palavras, apenas perguntas retóricas para romper o constrangimento do silêncio.
De repente, aparece minha irmã, carregando umas pastas enormes, cheias de papel. Ela se senta, arrasta a toalha do café para o lado, espalha as pastas por quase toda a mesa, as abre devagar e começa a tirar, um a um, vários, muitos papeis de seda, com riscos de bordado.
Penso no quão inapropriada era aquela atitude. Eu, prestes a ir embora, para bem mais longe do que o costume, sem saber quando voltaria, e ela já preocupada com as coisas dela, com providências a tomar, com um futuro próximo que de maneira alguma me incluiria. Sinto como se ela estivesse antecipando a minha partida.
Lentamente, minha irmã tira os papeis de seda das pastas e os vai colocando ao lado, sobre a mesa, à medida que vai tecendo alguns comentários. Alguns são pequenos, de um palmo, outros bem grandes, enormes, dobrados em dois ou em quatro. Uns desenhados apenas a lápis, outros reforçados a caneta, quase sempre azul. A maioria em preto e branco, mas alguns bastante coloridos.
Flores, muitas flores, das mais variadas espécies. Grandes, exuberantes, aglomeradas. Outras pequeninas, delicadas, simples, solitárias. Frutos e frutas também. De vez em quando brota, do meio daquele jardim, um utensílio de cozinha, um bule, uma xícara de chá. Ou alguns passarinhos, que parecem querer voar, se libertar.
Eu não consigo tirar os olhos da cena à minha frente, daquele movimento lento e contínuo do passar das folhas de seda, bem devagar, da esquerda para a direita, conduzidos pelas mãos pequenas e alvas da minha irmã, numa espécie de dança. O abrir e fechar das folhas de papel finíssimas, levemente transparentes e delicadas, é como o abrir e fechar das asas de pássaros. Pássaros brancos, de asas tênues e maleáveis, que se abrem e se fecham, se abrem e se fecham, se abrem e se fecham, devagarinho. Pássaros lá longe, bem no alto, dando a quem de baixo os observa a ilusão de que estão voando muito mais devagar no céu azul, deslisando sobre o infinito, para depois pousar no espaço ao lado, em busca do descanso merecido.
Minha visão se torna turva, envolvida pela transparência do papel de seda em movimento lento e pela dança suave das mãos da minha irmã. Meus olhos, fixos no que está a se passar ali à frente, abrem-se e fecham-se lentamente, as pálpebras pesadas, um peso gostoso, como quando estamos vendo um filme bom, mas o sono insiste em nos dominar. Pálpebras-pássaros. Pálpebras-asas. Abrindo-se e fechando-se lentamente. 
A voz macia da minha irmã, o falar igualmente lento, além do silêncio da minha mãe, tudo isso modifica o ritmo do meu pensamento, me conduzindo a uma espécie de transe. Não estou mais ali, sentada na sala que seria em minutos o meu ponto de partida. Não. Agora estou em processo de voo, a voar bem alto, no ritmo das asas alvas e calmas daqueles pássaros de papel. 
Devem ter-se passado uns três minutos, mas parece que foi uma manhã inteira de voo. Quando meu irmão buzina lá fora, acordo do transe. Não assustada, mas tranquila. É hora de ir embora... mas eu, que, minutos atrás era uma pilha de nervos, agora me sinto tranquila, em paz.
Para não perder o costume e para disfarçar o choro, antes de iniciar as despedidas, reclamo com minha irmã que ela já fez bordados para um monte de gente, de fora e da família, mas nunca bordou nada para mim.
Pois ontem, depois de cinco meses, chegou em minha casa, num país distante, uma caixa dos Correios brasileiros. Abro ansiosa e lá dentro estão, como em um ninho, duas toalhas bordadas por ela, especialmente pra mim.
Branquinhas... alvas como as pombas da paz... macias... cheirando a sabonete... o crochê – só o crochê – cuidadosamente engomado... Ao centro, o bordado de uma rosa cor de rosa intenso que acabou de desabrochar, no auge da sua beleza e vitalidade, meio tombada para o lado, num jogo de claros e escuros, sombras e luzes, folhas verdes a emoldurar.




Fico ali parada por alguns minutos a observar: a maciez do tecido, a textura dos pontos meticulosamente lavrados, a perfeição do avesso... E eu, que pensava não fazer parte do futuro da minha, me dei conta de que ela dedicou horas dos seus dias a mim, escolhendo a toalha, elegendo as cores, separando as linhas, passando o risco, bordando cada ponto cuidadosamente, crochetando, lavando, engomando, até chegar a hora da despedida. Sim... porque também há que se desapegar do bordado, que levantará voo, viajará por dias até vir pousar aqui ao meu lado, agora, trazendo um sentimento de amor, cuidado e pertencimento de que o coração precisa para seguir voando.
Obrigada, minha irmã. Te amo!