domingo, 30 de março de 2014

OK?!

Imagem retirada daqui

Você sabia que o dia 23 de março é o Ok Day (o Dia do Ok)? Isso mesmo: a palavra ok, uma das mais populares do mundo e a mais versátil da língua inglesa, tem um dia dedicado a ela e, na semana passada, completou 175 anos. 
Há muitas versões sobre o surgimento do ok, mas, segundo a mais aceita por linguistas americanos, ele foi registrado pela primeira vez em 23 de março de 1839 no jornal Boston Morning Post, que o usou como abreviação da expressão “oll Korrect”, grafia incorreta de “all correct” (“tudo certo”), baseada na pronúncia. Foi, na verdade, uma piada que acabou se tornando a palavra mais usada da língua inglesa e a mais compreendida no mundo todo, mais do que Coke (Coca-Cola). 
O ok tornou-se ainda mais popular depois de, na década de 1840, ser usado pelo Presidente Martin Van Buren em sua campanha à reeleição. Sendo ele original da cidade de Kinderhook, no estado de Nova York, e membro do Old Kinderhook Democratic Club (Clube Democrático Antigo de Kinderhook), adotou o slogan “Ok is Ok”, redução de “Old Kinderhook is OK”. Buren não venceu as eleições, mas até hoje essa cidade reivindica o status de criadora da expressão por causa desse episódio político.
Mais tarde, foi escolhido pelos operadores de telégrafo como uma abreviação fácil para dizer que receberam a transmissão com sucesso.
Não deixa de ser significativo que, em 1969, as primeiras palavras proferidas por Buzz Aldrin ao chegar à lua foram. “Ok. Engine stop.”
É verdade que a associação com “all correct” representa uma memória vaga nos dias de hoje, apenas uma curiosidade linguística, mas não há dúvida de que a sigla tornou-se uma das mais versáteis palavras ao redor do mundo.
Ok pode ser substantivo (“O diretor deu o seu ok.”), adjetivo (“Ele está ok.”), interjeição de aprovação (Ok!) e, em inglês, ainda pode ser verbo (“I okayed it”: “Eu aprovei isso”) e advérbio (Ele dirige ok.”: “Ele dirige bem.”). Em geral, denota aceitação ("Ok, você venceu!"), confirmação ("Ok, eu te acompanho."). Dependendo da entonação, indica algo que é bom, muito bom, simplesmente aceitável ou até mesmo medíocre. É também muito usado para introduzir um assunto ("Ok, vamos falar sobre as câmeras digitais.") ou chamar a atenção da audiência para um discurso ("Ok, vamos dar início ao debate."). Pode funcionar como um marcador conversacional, indicando que o ouvinte está atento à conversa. Usa-se no final de documentos para marcar aprovação e, mais modernamente, é a tecla em que clicamos para aceitar uma ação do computador. O ok pode ainda ter um valor emocional, sendo muito utilizado pelas mães americanas, que, ao afagar seus filhos, repetem em tom reconfortante: "It's ok, it's ok…". É também com essa palavrinha que elas encerram o assunto quando a paciência está quase acabando. Como se vê, trata-se de uma palavra altamente funcional, não sendo à toa que é a mais bem sucedida da língua inglesa.
Segundo Allan Metcalf, maior especialista no assunto e autor do livro Ok: a improvável história da maior palavra da América (Ok: The improbable history of America's greatest wordOxford University Press, 2010, 224 páginas), essa palavra de apenas duas letras se tornou tão popular porque expressa o que há de mais genuíno na visão de mundo norte-americana: é simples, sucinta, enfática e sobretudo eficaz. Para ele, quando se expressa aprovação com um ok, o que se quer não é a perfeição, mas que a ação seja simplesmente concluída, efetivamente.
Vale notar que essa prática, hoje muito comum, de transformar acrônimos e siglas em palavras de uso comum já era habitual há quase dois séculos. Atualmente, a linguagem jovem, particularmente a da Internet, é um prato cheio para o surgimento de novos vocábulos. Resta saber qual deles seguirá o caminho de sucesso do ok, sobrevivendo ao tempo, sendo registrado no dicionário, usado em todo o mundo e por todos compreendido. 
É interessante observar que o ok foi registrado oficialmente pela primeira vez nos Estados Unidos em 1864, em um Dicionário de Gírias (The Slang Dictionary), ao passo que, no Brasil, parece ainda não haver esse reconhecimento. A despeito de a letra k ter sido oficialmente integrada ao alfabeto pelo Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa e de o ok ser bastante utilizado nos países lusófonos, ele não está registrado no Vocabulário Ortográfico da Academia Brasileira de Letras nem em seu Dicionário Escolar, desse modo não fazendo parte, oficialmente, do vocabulário da língua portuguesa. Será mesmo?!
Tarefa para a próxima edição, senhora Academia. Ok?!






domingo, 23 de março de 2014

Todos os dias são meus


Pai e filha, de Michael Dudok

Recentemente, meus irmãos me atribuíram uma tarefa que parecia muito simples, mas que se revelou um tanto quanto complicada: escrever uma pequena biografia sobre o meu pai.
Nas primeiras tentativas, não me saíam da cabeça os versos de Fernando Pessoa, sob o pseudônimo de Alberto Caeiro, que dizem: "Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia,/ Não há nada mais simples/ Tem só duas datas - a da minha nascença e a da minha morte./ Entre uma e outra cousa, todos os dias são meus.". Então me vi na seguinte situação: ou eu seguia Pessoa e resumia a vida de meu pai a duas datas, a um epitáfio, ou eu precisaria de muito mais do que uma simples página, talvez de uma vida toda, para escrever a sua biografia.
Como, por exemplo, reduzir os pais do meu pai, personagens de tantas histórias, a apenas dois nomes? Como não contar que minha avó era uma mulher guerreira, muito brava e que nunca quis ver seu nome repetir-se em alguma das netas porque, para ela, todas as amélias eram sofredoras?  Que meu avô tinha uma doçura encantada, molhava o pão no vinho e, quando acabava as refeições, a mesa tinha de ser desfeita rapidamente porque os restos de comida o incomodavam? Essas memórias têm de ser simplesmente apagadas de uma biografia como a que eu me prestava a escrever?
Como omitir que meu pai foi uma criança quieta, de poucas palavras, que brincava sozinho no canto do quintal? Que começou a trabalhar aos oito anos de idade para ajudar em casa e que sentiu muita falta do pai quando este partiu, fechando-se ainda mais em seu próprio mundo? 
Como não mencionar que ele mentiu sobre sua data de nascimento para que a minha mãe não soubesse que ia se casar com um rapaz mais jovem? Que ele, ainda um pretendente, olhava a foto dela afixada em um mural e a enchia de beijos apaixonados? E que estávamos todos justamente falando disso e rindo muito quando o telefone tocou trazendo a notícia de sua morte? E sobre o silêncio que se seguiu, não posso falar?
Como não comentar a força que sua presença paterna representava? O respeito, a prontidão, o temor com que seguíamos suas ordens, mesmo depois de adultos? 
Como não dizer que meu pai, sempre muito calado, era na verdade um contador de histórias? Que, quando começava a rememorar fatos da infância e da adolescência, os contava com muito gosto, enfaticamente, saindo-se sempre vencedor, herói nas aventuras da vida? 
Que, aos domingos, antes do almoço, colocava Altemar Dutra e Nelson Gonçalves no toca-fitas e assoviava as melodias, às vezes cantava baixinho?
Que, ao ver um recém-nascido, o segurava pelos dedinhos, levantando-o bem alto, para desespero da mãe?
Que, ao despedir-se de mim no dia em que se mudou, repetiu a mesma frase que dissera à minha irmã vinte anos atrás, pedindo-me para não o decepcionar? 
Que era muito emotivo? Que era sempre com lágrimas nos olhos que ele passava as noites de Natal e que recebia as boas novas?
Que, quando, sem mais nem menos, perguntei quantos netos ele tinha, ele matou logo a charada e percebeu que mais um estava caminho?
Que, quando nos encontramos na UTI de um hospital pela última vez, eu tinha na barriga uma nova vida?
Que, naquele dia em que até os céus choravam a sua morte, um cortejo longo e lento se arrastou pelas ruas sinuosas da cidade? 
Que a saudade, a falta, o vazio, o silêncio, principalmente nos momentos em que se precisa de um conselho, de uma palavra, são doloridos demais? 
Que minha filha chorou copiosamente quando soube que o vovô queria muito conhecê-la, mas não foi possível? Que a história se repetiu?
Tantas palavras, tantas lembranças que completariam a biografia do meu pai… Mas tenho de me limitar a menos de uma página, me ater a algumas poucas datas e friamente cumprir a tarefa. 
Só me resta guardar a verdadeira biografia do meu pai dentro de mim e pensar que, como nos versos de Pessoa, todos os outros dias são meus. 


Ouça o poema Biografia, de Fernando Pessoa, aqui, e assista ao curta de animação do qual foi retirada a imagem deste post aqui.





terça-feira, 18 de março de 2014

Cursos de escrita criativa: perda de tempo?

Detalhe de Escola de Atenas,
do pintor renascentista Rafael,
Vaticano

Sendo este blog, para mim, um exercício de escrita, achei interessante compartilhar um debate que se estabeleceu esta semana no mundo acadêmico justamente sobre a escrita, mais precisamente sobre os cursos de escrita criativa. 
O jornal britânico The independent publicou uma matéria sobre o comentário do professor Hanif Kureishi, da Universidade de Kingston, Londres, em um evento literário. Ele, que ministra um curso de escrita criativa bastante procurado e apreciado pelos frequentadores, afirmou que esse tipo de aula, na verdade, é uma perda de tempo. Segundo ele, dos seus alunos, “provavelmente 99,9% não têm talento”: “Eles podem escrever períodos, mas não sabem como fazer uma história continuar até o final sem as pessoas morrerem de tédio no meio do caminho. E continua:  "Muitos dos estudantes não entendem. É a história que importa. Eles se preocupam com a escrita, com a prosa, e você pensa: ‘Dane-se a prosa, ninguém vai ler seu livro pela escrita, tudo o que eles querem é descobrir o que acontece na história em seguida’.” Finaliza afirmando que ele próprio jamais pagaria por esse tipo de curso: “Eu procuraria um professor que pudesse ser realmente bom para mim.”
Nos útimos anos, os cursos de escrita criativa se tornaram presença obrigatória nos currículos das universidades do Reino Unido e dos Estados Unidos, sendo bastante procurados por aqueles que querem se tornar escritores. Esses cursos nunca foram tão populares, por isso o depoimento de Kureishi causou tanta polêmica no mundo acadêmico, gerando discussões acaloradas entre estudantes e professores da matéria.
A escritora e ex-professora de escrita criativa Lucy Ellmann, em entrevista ao jornal The Guardian, disse concordar com Kureishi, pois considera esses cursos uma mentira. Segundo ela, eles podem custar nove mil libras por ano aos alunos, quando “o que eles deveriam estar fazendo é lendo o máximo de literatura possível, por anos e anos, ao invés de gastar metade da vida universitária escrevendo coisas que não não estão preparados para escrever.” “Uma vez feito isso, tudo o que você precisa e merece é de ajuda individual”, afirma.
Já Jeanette Winterson, da Manchester University, discorda: “Meu trabalho não é ensinar meus alunos a escrever; minha função é detonar linguagem em suas faces (…), é modificar suas relações com a linguagem. O resto é com eles”.
Os escritores Rachel Cusk e Matt Haig compartilham do mesmo posicionamento: “Aulas de escrita criativa podem ser muito úteis, assim como aulas de música. Dizer que 99,9% dos alunos não têm talento é cruel e errado. (…) É claro, sempre é preciso saber suas limitações. Por exemplo, eu poderia ter 7.000 aulas de guitarra, mas nunca seria Jimi Hendrix, embora eu pudesse me tornar muito melhor do que sou agora. Como a maioria das modalidades artísticas, escrever é parte instinto, parte técnica. A técnica pode ser ensinada, e isso pode fazer uma diferença crucial para muitos escritores.”
Penso que toda essa discussão é válida e está causando tanta reação apenas pelo fato de um professor reconhecido criticar sua própria área de atuação. No fundo, porém, as opiniões não são tão divergentes assim. O que se quer de um curso de escrita criativa é muita leitura, isso com toda a certeza, e talvez algum aconselhamento. O que não se quer é um professor que imponha aos seus alunos uma única vertente literária ou um único estilo de escrita. Nesse sentido, para mim, é possível que um curso desses seja bastante produtivo para aquele que pretende se tornar um escritor ou simplesmente melhorar sua escrita, desde que não seja visto como estratégia única. Não será apenas uma aula no final de semana que resolverá todos os problemas do aspirante a escritor, miraculosamente.
Poderíamos fazer isso tudo sozinhos, sem a intervenção de um professor, evitando pagar pelo curso? Sim, mas o debate, a conversa, a discussão podem ser muito úteis também. Compartilhar nossos escritos pode nos abrir os olhos para diferentes maneiras de se escrever e nos tornar mais conscientes de nossa própria escrita.
Quanto a mim, nunca participei um curso de escrita criativa, mas confesso que sempre tive vontade. Quando me imagino frequentando aulas como essas, penso em um professor apaixonado por literatura e que me transmita um pouco de sua imensa bagagem literária, indicando bons livros e trazendo muita poesia, muitos contos e trechos de romances  para leitura. Na verdade, seria um curso de "leitura criativa", atividade crucial para quem quer se tornar um bom escritor.
Pensando bem, nunca me inscrevi em um curso desses, mas, como estudante de Letras, frequentei inúmeros. Muitas das  minhas aulas de literatura foram cursos de escrita criativa.  Lembro-me do professor de literatura brasileira contemporânea a ler trechos de Clarice e Rosa, destrinchando, palavra por palavra, a escrita desses mestres. Naquele momento, eu sabia que, se um dia eu me tornasse uma escritora, era com aquela intensidade e beleza que eu queria escrever. 

E você, já frequentou algum curso de escrita criativa ou simplesmente um curso de redação que tenha valido a pena? Ou nem tanto? Gostaria de saber sua opinião.

quinta-feira, 13 de março de 2014

Sophia: mar de poesia

Foto retirada daqui

Recentemente, assisti ao documentário O nome das Coisas, sobre uma das maiores poetas portuguesas de todos os tempos: Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004)(assistir aqui).
Produzido por uma rede de televisão portuguesa, a RTP, no ano de 2007, o filme apresenta uma série de depoimentos (de pessoas da família, amigos e especialistas em sua obra), além de imagens da vida pessoal e pública de Sophia, permeados por sua própria voz, a tecer comentários e a declamar poemas. A poeta e sua obra são tratados de uma maneira tão cuidadosa e sensível que me levou a querer reler essa poesia repleta de vida, força, religiosidade, mar.
Em certa ocasião, perguntada sobre como se tornou poeta, Sophia afirmou que, ainda quando criança, em uma viagem de carro, intuiu a natureza do mistério da poesia ao reparar que a janela pela qual ela olhava coincidia, em alguns momentos, com as janelas das casas. Disse: "Pensei que talvez fosse isso: as palavras às vezes coincidiam com os seus significados, para depois deixar de coincidir outra vez." Essa reflexão explica, para mim, muito de sua poesia, que nos mostra uma série de imagens do real, as coincidências, que rapidamente identificamos, para depois nos encantar com o irreal, as "descoincidências", que nos surpreendem.
O mar era seu tema preferido. As lembranças da praia onde passava as férias quando criança, os mergulhos no fundo do mar de olhos abertos já depois de adulta, a fascinação pelo mar da Grécia, tudo isso está muito evidente em seus poemas:

Mar sonoro

Mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim,
A tua beleza aumenta quando estamos sós
E tão fundo intimamente a tua voz
Segue o mais secreto bailar do meu sonho,
Que momentos há em que eu suponho
Seres um milagre criado só para mim.

(Dia do Mar, 1947)


Casa branca

Casa branca em frente ao mar enorme,
Com o teu jardim de areia e flores marinhas
E o teu silêncio intacto em que dorme
O milagre das coisas que eram minhas.

A ti eu voltarei após o incerto
Calor de tantos gestos recebidos
Passados os tumultos e o deserto
Beijados os fantasmas, percorridos
Os murmúrios da terra indefinida.

Em ti renascerei num mundo meu
E a redenção virá nas tuas linhas
Onde nenhuma coisa se perdeu
do milagre das coisas que eram minhas.

(Poesia I, 1944)


Navio naufragado

Vinha de um mundo
Sonoro, nítido e denso
E agora o mar o guarda no seu fundo
Silencioso e suspenso.

É um esqueleto branco o capitão,
Branco como as areias
Tem duas conchas na mão
Tem algas em vez de veias
E uma medusa em vez de coração.

Em seu redor as grutas de mil cores
Tomam formas incertas quase ausentes
E a cor das águas toma a cor das flores
E os animais são mudos, transparentes

E os corpos espalhados nas areias
Tremem à passagem das sereias
As sereias leves dos cabelos roxos
Que têm olhos vagos e ausentes
E verdes como os olhos de videntes. 

(Dia do mar, 1947)

O mar era para ela não só objeto de contemplação; com ele, ela estabelecia uma relação especial. Em um outro documentário, de 1969, o cineasta português João César Monteiro mostra Sophia na praia com seus filhos, em um barco em alto-mar, nadando entre rochedos que formam grutas, em uma atitude de total intimidade e entrega. Entende-se por que imaginou as seguintes palavras para sua inscrição final:


Inscrição

Quando eu morrer voltarei para buscar
Os instantes que não vivi junto do mar

(O livro sexto, 1962)

Sophia também era muito politizada e tratava de temas ligados a uma realidade mais áspera. A limpidez e a transparência do mar talvez a fizessem aceitar menos o mundo dos homens. Por isso, está presente em seus versos uma crítica social bastante forte:

A paz sem vencedor e sem vencidos

Dai-nos Senhor a paz que voz pedimos
A paz sem vencedor e sem vencidos
Que o tempo que nos deste seja um novo 
Recomeço de esperança e de justiça.
Dai-nos Senhor a paz que voz pedimos.

A paz sem vencedor e sem vencidos

Erguei o nosso ser à transparência
Para podermos ler melhor a vida
Para entendermos vosso mandamento
Para que venha a nós o vosso reino
Dai-nos

A paz sem vencedor e sem vencidos

Fazei Senhor que a paz seja de todos
Dai-nos a paz que nasce da verdade
Dai-nos a paz que nasce da justiça
Dai-nos a paz chamada liberdade
Dai-nos Senhor paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

(Dual, 1962)


As pessoas sensíveis

As pessoas sensíveis não são capazes 
De matar galinhas
Porém são capazes de comer galinhas

O dinheiro cheira a pobre e cheira
À roupa do seu corpo
Aquela roupa
Que depois da chuva secou sobre o corpo
Porque não tinham outra
O dinheiro cheira a pobre e cheira
A roupa
Que depois do suor não foi lavada
Porque não tinham outra

"Ganharás o pão com o suor do teu rosto"
Assim nos foi imposto
E não:
"Com o suor dos outros ganharás o pão."

Ó vendilhões do tempo
Ó construtores
Das grandes estátuas balofas e pesadas
Ó cheiros de devoção e de proveito

Perdoai-lhes Senhor
Porque eles sabem o que fazem.

(Livro sexto, 1962)


Terror de te amar

Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo

Mal de te amar neste lugar de imperfeição
Onde tudo nos quebra e emudece
Onde tudo nos mente e nos separa.

Que nenhuma estrela queime o teu perfil
Que nenhum deus se lembre do teu nome
Que nem o vento passe onde tu passas.

Para ti eu criarei um dia puro
Livre como o vento e repetido 
Como o florir das ondas ordenadas.

(Coral, 1950)



A liberdade, privada aos portugueses durante grande parte do século XX, também é tema recorrente em sua poesia. Assim como o 25 de abril de 1974, o dia da Revolução que pôs fim à ditadura de Salazar:

Um dia

Um dia, gastos, voltaremos
A viver livres como os animais
E mesmo tão cansados floriremos
Irmãos vivos do mar e dos pinhais

O vento levará os mil cansaços
Dos gestos agitados irreais
E há-de voltar aos nossos membros lassos
A leve rapidez dos animais.

Só então poderemos caminhar
Através do mistério que se embala
No verde dos pinhais na voz do mar
Em em nós germinará a sua fala.


25 de abril

Esta é a madrugada que eu esperava
É o dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo

(O nome das coisas, 1977)

Ao final do documentário, as palavras do amigo e também poeta Manuel Alegre arrematam a essência dessa mulher. Sophia, já muito doente, pede a ele que diga alguns poemas. Ela o acompanha, mas, sem forças, apenas murmurando a melodia de cada verso, o canto. O corpo não aguenta mais, mas a essência da poesia, o ritmo, continua, vivo.

Informações complementares, a quem possa interessar: 
Além de poesia, Sophia publicou contos, histórias para crianças, ensaios e peças de teatro. 
Sophia ganhou vários prêmios ainda em vida, como o Prêmio Camões, em 1999, e o Rainha Sophia de Poesia Ibero-Americana, em 2003. 
Miguel de Sousa Tavares, escritor português bastante lido no Brasil, autor de Equador e Rio das Flores, é seu filho.  
Maria Bethânia declama alguns de seus poemas no disco Mar de Sophia, de 2007, cujo repertório tem como tema, claro, o mar.

segunda-feira, 10 de março de 2014

A onda

Ocean Stray, Carlin Blahnik


Estou convencida de que alguns livros escolhem os leitores. Foi assim com Wave (A onda), de Sonali Deraniyagala, publicado nos Estados Unidos pela Alfred A. Knopf e em Portugal pela Vogais. 
Primeiro chegou ao meu e-mail por meio de um jornal. Depois alguém o indicou em uma página do Facebook. Sempre que eu entrava em alguma livraria, lá estava ele, em posição de destaque, entre os mais lidos (sim, é um daqueles best sellers dos quais os formados em Letras como eu fogem como diabo da cruz). Colocou-se diante de mim, veio atrás, insistiu. Quando eu me escondia atrás da prateleira daquelas obras que ninguém lê, ele aparecia, não sei como, insinuando-se para mim. Até que não teve jeito: me rendi à capa preta, ao título curto, ao tom poético que parecia não combinar com o assunto.
Em resumo, Wave é a autobiografia de uma sobrevivente ao tsunami que devastou a costa do Sri Lanka em dezembro de 2004, no qual ela perdeu os pais, o marido e os dois filhos pequenos

Ponto final


Vazio


Silêncio

O que mais dizer sobre uma situação como essa? O que escrever? O que pensar? O que comentar sobre o sofrimento dessa mulher que inesperadamente perdeu as pessoas mais importantes em sua vida, incluindo os dois filhos, ainda crianças? Eu poderia parar este post por aqui. Nada que eu escreva vai expressar a tristeza, a dor, a força trágica de um acontecimento como esse. Nenhuma tentativa de me colocar em seu lugar vai me permitir descrever a sensação de vazio dessa mulher que, por algum motivo que foge à compreensão, precisa continuar vivendo.
Posso começar dizendo o quão impressionante é a descrição  inicial do momento em que o tsunami acontece: a sensação de que algo não vai bem (o mar muito mais próximo do hotel do que o usual), a tentativa de fuga, a correria do hotel com a família, o desejo de proteger os filhos, o olhar para trás e ver a água se aproximando, a água tomando conta de tudo, a perda do controle, a perda da consciência…  
Quando pensamos que isso basta, que pior não pode acontecer, Sonali acorda e se dá conta, meu Deus!, de que está viva. Essa mulher é então tomada por um terrível sentimento de culpa. Por que só ela teria sobrevivido? Sobreviver era a maior punição que ela poderia receber. O maior desejo era de que aquela onda gigante a tivesse levado para sempre também. 
Não há corpos para chorar, velar, enterrar. Assim como Antígona, a quem foi proibido o ritual de enterrar seus mortos, impedindo suas almas de fazer a travessia para o outro mundo, de Sonali é tirado o direito da despedida, impedindo sua alma de fixar-se, de encontrar-se no mundo de cá.
Para ela, só há uma saída: buscar evidências, necessárias mas dolorosas, da vida. Algo em que se agarrar para continuar a quase impossível tarefa de viver. E isso ela vai encontrar na casa da família em Londres, onde tudo está intacto: as roupas, os pertences, os brinquedos, o quintal, o escritório, as fotos, os cheiros. Tudo isso traz à memória imagens muito vivas de todos e é assim, ao meu ver, que ela começa a ensaiar alguma recuperação.
A outra maneira? A escrita. Escrever sobre o que se passou foi para Sonali uma estratégia de sobrevivência. Registrar tudo em detalhes foi a maneira que ela encontrou de lembrar, velar seus mortos e recomeçar. Seu livro é a concretização do passado perdido, necessário para que o presente se torne palpável novamente, e o fututo possível, qualquer que ele seja. A escrita como salvadora - o divisor de águas entre a morte e a vida.
Penso que Wave veio até mim para me dar uma lição e me mandar calar. No momento em que a adaptação a uma nova vida, os problemas quotidianos e a saudade representavam  minha tempestade pessoal, esse livro foi como uma onda a me derrubar e a mostrar que, na verdade, eu precisava dar graças por tudo: pela vida, a minha, a das minhas filhas e do meu marido. O resto se resolve.
Obrigada, Sonali.

terça-feira, 4 de março de 2014

Spiegelman: arte, a começar pelo nome

Auto-retrato nu, 1999


Recentemente, em visita ao Jewish Museum de Nova York para ver uma exposição de quadros do modernista Marc Chagall, (1887-1985), sobre a qual você pode ler aqui, me deparei com a retrospectiva da obra de um artista para mim até então desconhecido: Art Spiegelman (Art Spiegelman's Co-mix: a retrospective).
Não sei se seu trabalho é conhecido do público brasileiro em geral, mas ele tem uma presença bastante expressiva na arte contemporânea americana. Membro do movimento underground, o artista gráfico, desenhista, cartunista, designer, criador de histórias em quadrinhos e até infantis, Spiegelman criou sua própria tradição artística, caracterizada pela consciência histórica, pela inovação formal e pela autoconsciência pessoal. A tensão entre a arte de vanguarda e a cultura de massa inspirou seu trabalho como editor de duas revistas de grande influência (Arcade e Raw), como criador das capas da revista New Yorker e colaborador em importantes jornais. Nas capas abaixo, percebem-se algumas das temáticas recorrentes em sua obra: modernidade, tecnologia, política, (des)armamento, miscigenação:


                             



Seu trabalho mais famoso, Maus, foi traduzido para 26 idiomas e foi vencedor do Prêmio Pulitzer. O personagem que dá nome à série de histórias em quadrinhos, publicada no decorrer da década de 1980, foi inspirado na experiência de sua família durante o Nazismo. A narrativa mescla fatos relacionados ao Holocausto e a dinâmica da cultura popular. São utilizados estereótipos e alegorias, sendo os judeus representados por ratos, os polacos por porcos e os alemāes por gatos. Perguntado por um jornalista alemão se uma história em quadrinhos sobre Auschwitz não seria de mau gosto, ele respondeu: "Não, eu acho que Auschwitz foi de mau gosto".
      



O que mais cativou minha atenção para o trabalho desse artista foi sua arte inspirada no ataque às Torres Gêmeas, em 11 de setembro de 2001, que ele vivenciou muito de perto. Spiegelman explora de maneira extremamente expressiva esse momento histórico, criando uma série de broadsheets, panfletos em larga escala, com suas  próprias recordações do fato e críticas à política adotada após o ataque. A capa da New Yorker em referência ao ocorrido tornou-se histórica. Nela, ao invés do habitual colorido e do excesso de traços, o que vemos é esta sobreposição clean de cores escuras, expressando o vazio e o sentimento de luto de toda a nação naquele momento: 





Todo o trabalho sobre o 9/11 resultou na coletânea In the Shadow of no towers (Na sombra de nenhuma torre: Alguém sugere uma outra tradução?), da qual destaco  o trabalho abaixo. Nele, vê-se a destruição, a morte e o terror representados por meio de figuras simbólicas, com uma riqueza de detalhes e uma tragicidade fascinantes. 






Espero que este post tenha trazido alguma curiosidade em relação a esse artista. Sua obra representa muito mais do que sua pátria e temáticas a ela relacionadas; sendo os temas universais, podem interessar a quem se importa com o homem e sua condição pós-moderna.






PS: Todas as imagens foram retiradas daqui.