quinta-feira, 13 de março de 2014

Sophia: mar de poesia

Foto retirada daqui

Recentemente, assisti ao documentário O nome das Coisas, sobre uma das maiores poetas portuguesas de todos os tempos: Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004)(assistir aqui).
Produzido por uma rede de televisão portuguesa, a RTP, no ano de 2007, o filme apresenta uma série de depoimentos (de pessoas da família, amigos e especialistas em sua obra), além de imagens da vida pessoal e pública de Sophia, permeados por sua própria voz, a tecer comentários e a declamar poemas. A poeta e sua obra são tratados de uma maneira tão cuidadosa e sensível que me levou a querer reler essa poesia repleta de vida, força, religiosidade, mar.
Em certa ocasião, perguntada sobre como se tornou poeta, Sophia afirmou que, ainda quando criança, em uma viagem de carro, intuiu a natureza do mistério da poesia ao reparar que a janela pela qual ela olhava coincidia, em alguns momentos, com as janelas das casas. Disse: "Pensei que talvez fosse isso: as palavras às vezes coincidiam com os seus significados, para depois deixar de coincidir outra vez." Essa reflexão explica, para mim, muito de sua poesia, que nos mostra uma série de imagens do real, as coincidências, que rapidamente identificamos, para depois nos encantar com o irreal, as "descoincidências", que nos surpreendem.
O mar era seu tema preferido. As lembranças da praia onde passava as férias quando criança, os mergulhos no fundo do mar de olhos abertos já depois de adulta, a fascinação pelo mar da Grécia, tudo isso está muito evidente em seus poemas:

Mar sonoro

Mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim,
A tua beleza aumenta quando estamos sós
E tão fundo intimamente a tua voz
Segue o mais secreto bailar do meu sonho,
Que momentos há em que eu suponho
Seres um milagre criado só para mim.

(Dia do Mar, 1947)


Casa branca

Casa branca em frente ao mar enorme,
Com o teu jardim de areia e flores marinhas
E o teu silêncio intacto em que dorme
O milagre das coisas que eram minhas.

A ti eu voltarei após o incerto
Calor de tantos gestos recebidos
Passados os tumultos e o deserto
Beijados os fantasmas, percorridos
Os murmúrios da terra indefinida.

Em ti renascerei num mundo meu
E a redenção virá nas tuas linhas
Onde nenhuma coisa se perdeu
do milagre das coisas que eram minhas.

(Poesia I, 1944)


Navio naufragado

Vinha de um mundo
Sonoro, nítido e denso
E agora o mar o guarda no seu fundo
Silencioso e suspenso.

É um esqueleto branco o capitão,
Branco como as areias
Tem duas conchas na mão
Tem algas em vez de veias
E uma medusa em vez de coração.

Em seu redor as grutas de mil cores
Tomam formas incertas quase ausentes
E a cor das águas toma a cor das flores
E os animais são mudos, transparentes

E os corpos espalhados nas areias
Tremem à passagem das sereias
As sereias leves dos cabelos roxos
Que têm olhos vagos e ausentes
E verdes como os olhos de videntes. 

(Dia do mar, 1947)

O mar era para ela não só objeto de contemplação; com ele, ela estabelecia uma relação especial. Em um outro documentário, de 1969, o cineasta português João César Monteiro mostra Sophia na praia com seus filhos, em um barco em alto-mar, nadando entre rochedos que formam grutas, em uma atitude de total intimidade e entrega. Entende-se por que imaginou as seguintes palavras para sua inscrição final:


Inscrição

Quando eu morrer voltarei para buscar
Os instantes que não vivi junto do mar

(O livro sexto, 1962)

Sophia também era muito politizada e tratava de temas ligados a uma realidade mais áspera. A limpidez e a transparência do mar talvez a fizessem aceitar menos o mundo dos homens. Por isso, está presente em seus versos uma crítica social bastante forte:

A paz sem vencedor e sem vencidos

Dai-nos Senhor a paz que voz pedimos
A paz sem vencedor e sem vencidos
Que o tempo que nos deste seja um novo 
Recomeço de esperança e de justiça.
Dai-nos Senhor a paz que voz pedimos.

A paz sem vencedor e sem vencidos

Erguei o nosso ser à transparência
Para podermos ler melhor a vida
Para entendermos vosso mandamento
Para que venha a nós o vosso reino
Dai-nos

A paz sem vencedor e sem vencidos

Fazei Senhor que a paz seja de todos
Dai-nos a paz que nasce da verdade
Dai-nos a paz que nasce da justiça
Dai-nos a paz chamada liberdade
Dai-nos Senhor paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

(Dual, 1962)


As pessoas sensíveis

As pessoas sensíveis não são capazes 
De matar galinhas
Porém são capazes de comer galinhas

O dinheiro cheira a pobre e cheira
À roupa do seu corpo
Aquela roupa
Que depois da chuva secou sobre o corpo
Porque não tinham outra
O dinheiro cheira a pobre e cheira
A roupa
Que depois do suor não foi lavada
Porque não tinham outra

"Ganharás o pão com o suor do teu rosto"
Assim nos foi imposto
E não:
"Com o suor dos outros ganharás o pão."

Ó vendilhões do tempo
Ó construtores
Das grandes estátuas balofas e pesadas
Ó cheiros de devoção e de proveito

Perdoai-lhes Senhor
Porque eles sabem o que fazem.

(Livro sexto, 1962)


Terror de te amar

Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo

Mal de te amar neste lugar de imperfeição
Onde tudo nos quebra e emudece
Onde tudo nos mente e nos separa.

Que nenhuma estrela queime o teu perfil
Que nenhum deus se lembre do teu nome
Que nem o vento passe onde tu passas.

Para ti eu criarei um dia puro
Livre como o vento e repetido 
Como o florir das ondas ordenadas.

(Coral, 1950)



A liberdade, privada aos portugueses durante grande parte do século XX, também é tema recorrente em sua poesia. Assim como o 25 de abril de 1974, o dia da Revolução que pôs fim à ditadura de Salazar:

Um dia

Um dia, gastos, voltaremos
A viver livres como os animais
E mesmo tão cansados floriremos
Irmãos vivos do mar e dos pinhais

O vento levará os mil cansaços
Dos gestos agitados irreais
E há-de voltar aos nossos membros lassos
A leve rapidez dos animais.

Só então poderemos caminhar
Através do mistério que se embala
No verde dos pinhais na voz do mar
Em em nós germinará a sua fala.


25 de abril

Esta é a madrugada que eu esperava
É o dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo

(O nome das coisas, 1977)

Ao final do documentário, as palavras do amigo e também poeta Manuel Alegre arrematam a essência dessa mulher. Sophia, já muito doente, pede a ele que diga alguns poemas. Ela o acompanha, mas, sem forças, apenas murmurando a melodia de cada verso, o canto. O corpo não aguenta mais, mas a essência da poesia, o ritmo, continua, vivo.

Informações complementares, a quem possa interessar: 
Além de poesia, Sophia publicou contos, histórias para crianças, ensaios e peças de teatro. 
Sophia ganhou vários prêmios ainda em vida, como o Prêmio Camões, em 1999, e o Rainha Sophia de Poesia Ibero-Americana, em 2003. 
Miguel de Sousa Tavares, escritor português bastante lido no Brasil, autor de Equador e Rio das Flores, é seu filho.  
Maria Bethânia declama alguns de seus poemas no disco Mar de Sophia, de 2007, cujo repertório tem como tema, claro, o mar.

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