domingo, 13 de agosto de 2017

Se podes ver, repara!



Passei muitas vezes em frente a essa casa abandonada no centro histórico de Assunção, no Paraguai. A construção bastante deteriorada me chamava a atenção devido a um fato inusitado: na sua lateral, nasce uma árvore. Das entranhas das paredes trincadas, descascadas, maltratadas pelo tempo, brota o tronco, vivo, vivíssimo, já adulto, que vai subindo parede afora, até o topo, onde a copa aflora sobre o telhado, dando um show de deslumbre e demonstração de força da natureza. 
Tentei por tudo neste mundo fotografar essa parede-árvore, árvore-parede. De perto, de longe, do outro lado da rua, na ponta dos pés, quase deitada na calçada... Celular, câmera velha, câmera nova... Nada! Nenhuma foto faz jus ao que se vê quando se passa. 



Um dia me dei conta de que, aficcionada pela árvore, nunca tinha tido a curiosidade de olhar o outro lado, aquilo que estava escondido depois da curva da esquina, na verdade a fachada principal da casa.
A primeira reação foi o susto, tamanha a beleza da construção! Chega até mesmo a ser difícil olhar. É preciso afastar-se, ir ao outro lado da rua para obter uma visão geral. Então se vê. O  número é o 592, impresso duas vezes na porta e, para não restar dúvida, uma vez mais na parede. A cor, meio amarelada - nem amarelo nem mostarda nem creme - transmite uma sensação de paz e tranquilidade, um pouco prejudicada por algumas pichações sem sentido. A forma retangular revela uma estrutura simétrica: ao centro, a porta altíssima, imponente, de madeira, coroada por uma estrutura oval de ferro que deixa entrever a escuridão lá dentro; duas janelas médias de cada lado, com suas respectivas varandinhas, provavelmente apenas estéticas, pois muito estreitas. Na calçada à frente, entre a porta e a primeira janela à esquerda, magnânimo e elegante, um ipê, conhecido na região como lapacho. O tronco, que se bifurca bem embaixo, divide-se em dois um pouco mais finos, os quais vão subindo levemente na diagonal, para só depois, bem em cima, abrir-se em galhos ainda mais delgados, agora com folhas rareadas pelo inverno, mas no auge de sua floração cor-de-rosa. 
Bem no canto à esquerda, como parte da própria casa, mais ou menos na altura das janelas, uma floreira! Um vaso de flor de cimento, um pouco escurecido pela umidade, ali inserido, cuidadosamente. Não sei como alguém poderia alcançá-lo para dispor ali alguma planta, mas o maravilhoso ipê, consciente dessa quase impossibilidade, trata, com a ajuda do vento, de fazer passear por perto suas flores rosadas, lembrando essa antiga peça da sua utilidade original.



Um outro pormenor, porém, apenas me foi possível com a ajuda do zoom da minha câmera fotográfica. Esse instrumento poderoso me permitiu reparar no detalhe para mim mais precioso da casa número 592. No topo, no alto mais alto da casa, bem no meio de uma espécie de armação arredondada, encontra-se, pequenina, uma delicada e simpática conchinha do mar. Parece banal, mas a beleza e a falta de entendimento quase me levam a perder o ar. Como pôde alguém, ao projetar ou construir essa casa, ter o cuidado de colocar um enfeite tão pequeno ali, tão distante do olhar dos transeuntes? 
Tendo como cenário o azul claro e translúcido do  céu de inverno, as folhas daquela mágica árvore, suas florezinhas rosadas e os cabos de eletricidade que desajeitadamente passam por ali, lá está ela, levemente carcomida pelo tempo, talvez pelo movimento de pássaros, escurecida pelo mofo nas curvas menos expostas ao sol, mas com seu estilo e delicadeza preservados, quase um brinquedo de menina, um talismã, um enfeite para colocar no cabelo. E por que justo uma concha, símbolo da fertilidade feminina, da fecundidade, lembrança de mares e oceanos? O significado de prosperidade talvez me faça mais sentido, dada a localização outrora nobre. Imagino que milhares de pessoas passaram por este lugar inúmeras vezes, durante anos, séculos até, e nunca repararam… 
Sábio José Saramago, que, em seu livro Ensaio sobre a Cegueira, afirmou: "Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara." Não basta olhar… é preciso ver com mais atenção. Não basta ver… é imprescindível reparar! Não fosse o meu olhar atento, e nesse caso incentivado pelo fotográfico, esse detalhe teria passado despercebido, e eu não teria tido o prazer de apreciar essa fazedora de pérolas, escondida no alto de uma linda casa antiga abandonada em uma rua do centro de Assunção. 

P.S. Foi justamente esta foto, a da pequena conchinha (exposta no topo desta página), a que escolhi para me representar na exposição final do meu Curso Básico de Fotografia no Instituto de la Imagen, cujo tema foi "Imágenes de Asunción". Talvez ela não seja tão óbvia, pois não representa uma cena facilmente reconhecível como asuncena. Não é o rio. Não é a rua. Não é o homem. Não é o tererê. Não é o ñaduti. Mas representa o meu olhar sobre a cidade. Para mim, é necessário praticamente afastar com as mãos os cabos de energia em excesso (e a poeira, e a poluição, e a sujeira, o trânsito caótico e agressivo, a falta de manutenção e organização, os serviços muitas vezes precários e imperfeitos), pedindo-lhes licença, para ver as flores dos lapachos, o céu azulíssimo do verão, o nascer e o pôr do sol laranja-avermelhados, as casas e edifícios antigos, a arborização intensa superverde, as pequenas flores que brotam acidentalmente na calçada, algum trabalho quase artístico escondido nos muros envelhecidos, o sorriso do menino no sinal de trânsito, a poesia da cidade enfim.... Para aquele que passa e olha sem reparar (na maioria das vezes nem olha), as conchinhas delicadamente dispostas no alto dos edifícios simplesmente não existem... E nesse passar apressado, nublado, muitas vezes cego, a vida perde em beleza, em suspiros, em sentido. 




domingo, 12 de março de 2017

Nenhuma mania, nenhuma fotografia




Nas contações de histórias da família, fala-se muito sobre minha avó paterna, aquela mulher franzina, de lenço no cabelo, forte e brava que criou os sete filhos sozinha, que um dia, com raiva do meu avô, atirou as jaboticabas que colhera para ele ladeira abaixo, que fumava tanto que até o médico recomendou que continuasse pra não morrer de abstinência e que não queria nenhuma neta com o seu nome porque todas as amélias são sofredoras.
Mas e minha avó materna? O que se lembra dela? Apenas que se chamava Percília e que morreu quando minha mãe tinha quatro anos de idade. Só isso... Nada mais se sabe. Nenhuma descrição. Nenhuma história triste ou engraçada. Nenhuma mania. Nenhuma fotografia. Nenhum anel. É como se essa mulher praticamente não existisse.
Como isso é possível?
Da próxima vez, nas rodas de bate-papo e risaiadas sem fim, vou reivindicar a sua lembrança. Vou trazer à tona a história da minha avó, aquela que deu a vida à minha mãe, que a gerou, a trouxe em seu ventre durante nove meses, a deu à luz. Isso já basta, é muito e é tudo! Sem ela, nenhum de nós existiria como existimos, não seríamos o que somos, da maneira como somos.
O que há dela em minha mãe? O encanto pela leitura, que a fazia ler até de madrugada à luz de velas no colégio interno onde viveu durante muitos anos? A alegria da juventude, que a levava a bailar pelos salões das festas de família com o primeiro par feminino que aparecesse (feminino, porque meu pai não dançava e morria de ciúmes se fosse masculino)? O jeito meio esbaforido de querer fazer as coisas rápido, servir a mesa num minuto, ajeitar tudo pra depois recostar-se no sofá? O apreço por brincos e colares? O cerrar de dentes quando fica brava? O hábito de dar beliscões doloridos para repreender? Será que essa minha mãe veio dela?
E o que deixou de ficar dela em minha mãe devido à sua morte prematura? Pobre mãe, no auge da sua maternidade, as filhas ainda tão pequenas, percebendo aos poucos que morria... Pobre filha, órfã aos quatro anos, sem compreender, sendo separada das irmãs e levada para sempre... Teria alguém explicado a ela o que acontecera? Que sua mãe morrera e por quê? Poderia ela entender ou simplesmente deixar a ausência tomar conta de seus sonhos de infância? Brincava essa minha mãe menina? Corria pelos campos? Vivia? Recebia carinho? Cuidados? Ou se deixava ficar, quietinha, esperando a mamãe voltar...
Imagino-a – minha avó – magra, mas não muito, de pele branca como a da minha mãe, cabelos negros como os da minha mãe, no ombro, meio ondulados, usando saia abaixo dos joelhos e blusa clara de botões. Vejo-a de pé, deixando-se ficar um pouco mais atrás, desfocada na imagem, parada, em silêncio, deixando-se ver, mas não muito.
Ah... Como eu queria ter uma foto sua sequer, já mulher adulta, já mãe da minha mãe. A imagem que minha mãe teve ao nascer e em seus primeiros anos de vida. Ou quem sabe um livro que fora seu. Uma presilha de cabelo. Um lenço perfumado.
Como mãe pertencente à sua linhagem, levo muito de você, mas não tenho consciência plena dessa herança. A maneira como penteio o cabelo das minhas filhas talvez... Algum traço da minha fisionomia... Os dedos longos das mãos...
Hoje eu te reverencio. Me curvo diante de ti, te agradeço a vida que me deste e aos meus irmãos por meio da minha mãe. Se pudesses, serias tão orgulhosa da sua filha – minha mãe: da maneira otimista como ela viveu a vida, do sorriso em seu rosto, de como foi e é querida por todos os amigos e familiares, da sua elegância, da fé em Deus que a move, da dedicação à igreja e à família, da capacidade de multiplicar o pão nos momentos mais difíceis, da educação que nos deu, do poder de sua oração diária pelos filhos e netos. E como se orgulharia de nós, netos e bisnetos... Somos uma família bonita e especial... Graças também a ti, que nos possibilitou a vida! Obrigada! Obrigada! Obrigada!
Não se penitencie. Não tens culpa. Tudo o que acontece, mesmo a dolorosa ausência, precisa acontecer. Tem o seu significado e nos faz crescer. Precisávamos viver essa ausência.
Com cuidado, respeito, lágrima nos olhos e as mãos fortes, seguras, junto seus pés retos lado a lado, pouso suas mãos sobre o seu peito, como em uma oração, cerro suas pálpebras com delicadeza e faço o sinal da cruz.
Descanse em paz.
E que nós que aqui estamos continuemos nosso caminho, cheios de vida (VIDA!), até quando tenha de ser.
Amém!


domingo, 22 de janeiro de 2017

Ajeita sua carteira!



Mesmo com a excessiva doçura nas feições, na voz, no olhar e nos gestos – verdadeira, autêntica, natural –, ela parecia uma menina absolutamente normal.
Normal no sentido de que acorda de manhã não muito cedo, toma chá ao invés de café com leite, sai pra trabalhar com lenço de gatinhos no pescoço, lê um best seller no ônibus, sabe de cor as canções da Cássia Eller, evita as pedras pretas das calçadas de Copacabana, toma sopa de ervilhas com hortelã às seis da tarde e escreve haicais de madrugada no computador.
Até que o mistério acontece... Bem à minha frente no café, depois de bebericar o espesso chocolate quente e lambiscar as migalhas do pan au chocolat que ficaram no prato de porcelana, parece desviar levemente a atenção das palavras que eu insisto em proferir e, com uma concentração lenta, mas ímpar, inicia um processo de revelações infinitas. O olhar acompanhando o movimento do corpo, tão focado quanto a respiração, as mãos delicadas, retira da bolsa marrom claro uma bolsa de tamanho médio de cor azul-turquesa. Abre o zíper tão devagar que nem se ouve o ruído e, de dentro, retira uma outra bolsa ainda menor meio cor de rosa, e outra amarela do mesmo tamanho, e desta outra supercolorida com motivos de desenho animado, e outra pequena, e outra pequenina, e mais outra bolsinha superminúscula em formato de coração, e outra, e outra, e outra, tantas que nem sei. Perdi as contas, confusa em meio àquela imensidão de compartimentos e possibilidades.
Comentei sobre a beleza de uma e de outra – gostei especialmente daquela com personagens de desenho animado – e indaguei alguma coisa lateral, não querendo adentrar muito na intimidade daquela menina. Sim! Quer coisa mais íntima do que bolsa de mulher? O que dizer daquelas inúmeras bolsas dentro da bolsa? É intimidade demais! Fiquei quieta.
Mas a menina, percebendo meu interesse, não demorou muito e começou a abrir cada bolsa, cada bolsinha, revelando um  mundo diverso.
Escova de cabelo e liguinhas; escova de dentes, fio dental e pasta; lenços de papel secos e umidecidos; celular; chaves da casa e do escritório; remédio pra enxaqueca e Florais de Bach; creme para as mãos e protetor solar; bloco de papel e canetas coloridas fosforescentes; cartão de crédito e cash; moedas – algumas antigas, sem valor; documento de identidade e título de eleitor; espelhinho redondo de abrir e batom cor de boca; as poesias completas de Mário Quintana – de bolso – com um recibo de supermercado escondido entre as páginas, no verso a indicação de um romance de Mia Couto; uma fotografia antiga. Tudo arrumadinho, dividido por categorias, cada uma em sua pequena bolsa, que se encaixava numa bolsa maior, depois em outra e outra, para por fim esconderem-se todas na bolsa mãe principal.
Por abrir, havia ainda uma bolsa de tamanho médio, verde-esmeralda, que ela deixou por último. Olhou bem nos meus olhos, demorou o movimento, enfim abriu lentamente o zíper e de lá foi tirando, aos poucos: uma feliz lembrança de infância; os planos de viajar para a Grécia; a tristeza de um amor perdido; a sombra no banco da praça; a sensação fresca da cachoeira; um pôr do sol esquecido; a gota de chuva; o encontro de domingo; uma estrela do céu; o conforto na poltrona da sala; o giro dos planetas; o sabor a castanhas do bolo; o banho quente ao fim do dia; o sonho de chegar à Lua.
Abriu todas as bolsas. Mostrou o que tinha dentro. Revelou. E revelou-se.
Meus assuntos quotidianos perderam valor... Se é que um dia tiveram. Melhor calar, observar e aprender com a maneira doce, suave e colorida como ela organizava o quotidiano e por fim a vida. Sim! A bolsa, arrumada daquela maneira, era uma forma de vida, uma visão de mundo.
Um dia ouvi algo assim: se quer melhorar de vida, organiza suas gavetas. Agora entendo: se quer ter uma vida mais suave, ajeita sua carteira.
Após dizer tchau, sacou da bolsa, não sei de qual parte, não pude ver (apesar de ela saber onde tudo está de cor e salteado), uma daquelas caixinhas de Tic-Tac, enfeitada com estrelinhas douradas que ela mesma colara, e dela retirou, perfeitamente enroladinho, o fone de ouvido. Estendeu, procurou indecisa a direita e a esquerda, colocou nos ouvidos cuidadosamente, deu um tempo pra música começar e pôs-se a andar, sem antes virar-se para mim de olhos sorridentemente fechados e soltar no ar um beijo estalado.