domingo, 14 de dezembro de 2014

O Natal ideal poderia ser em Nova York




Se tem uma cidade onde se vive o Natal intensamente, essa é Nova York. 
É verdade que existe o consumo exagerado, as lojas lotadas de turistas e locais ansiosos pelas falsas promoções, os dois segundos a que se tem o direito de parar na calçada para apreciar a árvore do Rockefeller Center (os seguranças não deixam ficar mais do que isso, do contrário prejudicaria o fluxo de pedestres) e a fila de três horas para tirar uma foto com um dos Papais Noéis da Macy's (sim, há várias cabines com vários bons velhinhos escondidos lá dentro e mesmo assim a espera pode chegar a quatro horas). Mas há, por outro lado, uma aura, uma magia, um clima natalino autêntico e contagiante. 
Primeiro, gosto da ideia de celebrar o Natal intensamente durante todo o mês de dezembro. Por que deixar só para os dias 24 e 25? O ritual de pincelar a casa toda de vermelho e dourado, montar a árvore de Natal, espalhar luzinhas pelas janelas e varandas gera o conforto e o calor necessários aos corpos e às mentes já cansados do inverno que mal começou. A noite chega às 4:30 da tarde, mas as luzes do Natal estão lá  para dar a sensação de festividade e aquecer nossas vidas.
Adoro passear pelas não tão célebres praças da cidade com suas árvores de Natal não tão gigantes, com suas feirinhas cheias de penduricalhos tilintantes, com aroma a pretzels e a cidra, ao som das vozes de Elvis e Sinatra cantarolando os clássicos natalinos. Não raro um pequeno coral surpreende a todos com seu canto macio.
Os pinheirinhos de Natal naturais se espalham pelas ruas, exalando seu inconfundível aroma e trazendo um charme especial à cidade. É muito comum as famílias irem até o campo escolherem seu próprio pinheiro e depois levá-lo para casa amarrado solenemente no capô do carro até suas casas. Lá eles ficam a enfeitar e a perfumar até o início de janeiro, quando os caminhões de lixo passam pelas ruas melancolicamente recolhendo as centenas de arvorezinhas colocadas na calçada, já despidas dos ornamentos que as fizeram se sentir importantes durante algum tempo.
As livrarias se tornam ainda mais encantadoras, repletas de histórias sobre o nascimento de Jesus, papeis de presente e sacolinhas coloridas, lindos cartões de Natal, muitos feitos a mão (sim, nos Estados Unidos, considerado por muitos um país tão frio e capitalista, ainda existe o hábito de se enviar cartões de Natal, alguns feitos a mão!). Gosto de me fazer de perdida na seção de livros infantis e ouvir um pouquinho das  histórias para crianças que acontecem nessa época.
Não entendo por que o americano, tão dado a vender ideias pelo mundo, não compartilhou com todos a receita de eggnog, uma bebida típica do Natal. Essa espécie de gemada, como a que nossas avós preparavam para ficarmos fortes, é super cremosa, tem sabor de baunilha e especiarias e pode ser feita em casa ou comprada pronta em supermercados.
As gingerbread houses (casinhas feitas de biscoito de gengibre e cobertas de confeitos) bem que podiam também ser exportadas para o mundo. Todo ano, crianças e adultos entram no mundo dos contos de fadas e se deliciam no preparo dessas simpáticas casinhas cheias de cores e sabores que servirão para decorar a casa e mais tarde para saciar as boquinhas doces. Posso garantir que não há espaço para bruxas nessa história…
Todo ano, no dia 24, às cinco da tarde, pessoas se aconchegam bem embaixo do imponente arco do Washington Square Park, tendo a bela árvore iluminada como cenário, e fazem um silêncio respeitador para escutar o coral de mais de 50 vozes. Essas, totalmente afinadas, cantam as canções de todos conhecidas, aquelas que amaciam até os mais insensíveis corações, formando uma redoma de calor e conforto (a temperatura geralmente é abaixo de zero). A determinada altura, as pessoas param de chegar, as crianças param de chorar, todos se contagiam e começam - homens, mulheres, crianças, idosos - a sussurrar os poemas conhecidos de coração. Coral e comuns se misturam neste que para mim é o momento mais mágico do Natal nova-iorquino. Nessa hora, não se ouve o mundo ao redor, não existem as buzinas dos taxis amarelos, tudo para, e as almas saudosas de seus entes distantes não conseguem segurar a emoção. 
Toda essa maravilha seria o Natal perfeito, o melhor Natal do mundo, não fosse uma outra festa que acontece todo ano, em um país distante, mais ao sul, em uma pequenina cidade do interior... Mas esse é assunto para um próximo post.

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

O guarda-chuva cor-de-rosa





Chovia hoje pela manhã. Uma chuva fina, até agradável, que não chegava a incomodar.
No pátio da escola, pais apressados procuravam despachar logo os filhos, crianças aflitas tentavam descobrir o caminho a seguir em um dia confuso como este, carrinhos, pernas e sombrinhas se atropelavam. Perto, um menino se despede da mãe. Percebe-se pelos olhos que ele faz um pedido, mas ela, entre as gotas que pareciam tornar a manhã tão mais complicada, dá uma resposta fria e impaciente: “Não é hora disso! Vai!”, vira-se e segue para não mais. O menino, desprotegido do guarda-chuva da mãe, para, petrificado. As feições tornam-se tensas, cada vez mais e mais, e ele começa a chorar. Um choro baixinho e sentido. O mundo todo se move apressadamente e ele ali, parado, sentindo as gotas gélidas sobre a pele delicada, misturadas agora ao choro morno de decepção e medo. A mãe já se foi, desapareceu para sempre, deixou-o sozinho e humilhado, sem saber que rumo seguir, sem saber como prosseguir.
Mal percebe ele que, ao seu lado, uma menina o observa. Uma menina de olhos grandes, castanhos, expressivos, curiosos. Com seu guarda-chuva cor-de-rosa, ela diminui o passo, obrigando as pessoas a se desviarem. Um menino frágil, coberto de lágrimas, triste. Uma menina forte, decidida, segura. Ela se aproxima bem devagar, aos pouquinhos, sem querer assustá-lo. Prepara-se cuidadosamente para a abordagem, abrindo um sorriso leve e afetuoso. Ela se aproxima, olhando-o sempre, a cabeça levemente caída para o lado. Seu olhar é terno e maternal. Ele, agora consciente da presença muito próxima, olha-a de lado, envergonhado. O choro vai cessando aos poucos. Ela se aproxima um pouco mais, os olhos meigos fixos no dele, o sorriso doce, e oferece, silenciosamente, um espaço debaixo do seu mundo cor de rosa. Provavelmente não é de proteger-se da chuva que ele precisa. Faltou uma palavra, uma resposta, um mínimo cuidado que a correria da manhã chuvosa não permitiu. Mas agora nenhuma palavra precisa ser dita. O olhar é firme, embora suave, e convida – primeiro a ficar, a estar, a compartilhar, em seguida a continuar. Ele hesita. Depois cede, e a feição se transforma, agora mais calma, como em uma espécie de contágio. Os ombros se tocam e, nesse momento, um pequeno mundo à parte se forma, cercado de uma aura de silêncio, cumplicidade e aconchego. Olhares fixos, espécie de ímã. Sorrisos em sintonia. Menino e menina voltam a caminhar devagar, depois um pouco mais rápido, como os demais. O pequeno mundo à parte se desfaz, e eles se confundem novamente com o pátio da escola. Tudo volta ao normal, agora sem choro, sem medo. Tudo se move, na rapidez necessária ao andamento do dia. Da maneira como tem de ser.
Apenas uma mãe, parada à distância, a observar, com um sorriso leve nos lábios e lágrimas nos olhos, se deixa ficar mais um pouco, paralisada pela aura de encantamento, emocionada com a gentileza espontânea, verdadeira, grandiosa e maternal da filha.

domingo, 9 de novembro de 2014

A primeira biblioteca a gente nunca esquece

Imagem retirada do site da BDB

A minha paixão por bibliotecas vem de longa data. Pequenas ou monumentais, simples ou esplendorosas, antigas ou modernas, elas com certeza são o meu refúgio onde quer que eu esteja.
Em Brasília, sem dúvida alguma, a que mais frequentei foi a  Biblioteca Demonstrativa (que faz parte do Ministério da Cultura - Diretoria do Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas)Por ficar muito perto da casa onde eu morava nos anos 80 e 90, esse era o lugar para onde eu fugia para estudar, ler ou simplesmente lá estar. 
A construção singela, baixa e retangular, de cor branca, com letreiros em dourado e uma pequena marquise sobre a porta de entrada, integra a paisagem da avenida W3 sul e recebe cerca de 700 usuários diariamente. A roleta de entrada leva ao balcão de informações, empréstimos e devoluções. No centro da construção, a sala principal de leitura, com mesas de estudo cercadas por estantes baixas para os livros de referência, como dicionários e enciclopédias. Na entrada, à esquerda, uma sala dedicada à literatura infantil e outra com o acervo principal, também local de leitura e de estudo. À direita, um cantinho que já foi livraria, café e espaço de leitura infantil, além de salas para fins diversos, como a administração, a tesouraria (quem nunca devolveu com atraso?), o xerox, salas de conferência e um pequeno espaço de exposições. Ali, e também na sala principal, aconteciam saraus, concertos e premiações de concursos literários, sendo intensa a atividade cultural desse espaço. Atrás do balcão de empréstimos,  ao centro, uma simpática gibiteca, com seus jovens e solitários leitores. 
Comecei a frequentar a Biblioteca Demonstrativa no início dos anos 90, quando, devido a uma desilusão amorosa, fiquei de recuperação em duas ou três matérias e, para estudar, precisava fugir do barulho que fazia na minha casa durante o mês de dezembro, com a chegada dos irmãos e sobrinhos. Gostei do conceito “ambiente de estudo”, da presença constante dos livros e, sozinha ou em grupo de amigos, me tornei frequentadora assídua. Passava horas entre os corredores escuros e apertados, observando os exemplares, sentindo o cheiro dos livros, do qual me lembro até hoje, escolhendo a próxima leitura ou o apoio para os estudos. 
Na verdade, a Biblioteca, nessa época conhecida como Instituto Nacional do Livro, o INL, não era nada organizada. Qualquer um podia entrar (até mesmo mendigos e rapazes não muito bem intencionados ), e as salas de estudo pareciam mais uma feira: era uma barulheira sem fim, todos conversando em voz alta, rindo, paquerando, um entra e sai constante e até vendedores de rosquinhas e salgadinhos passeando por entre as mesas. Quem queria estudar a sério tinha de escolher outro lugar.
O tempo passou, estudei em várias instituições de ensino, frequentei suas respectivas bibliotecas, mas nunca deixei de ir à BDB. Quando voltei à cidade, depois de alguns anos fora, a Biblioteca era fisicamente a mesma, mas uma campanha iniciada, se não me engano, pela Biblioteca Central da Universidade de Brasília, associada à era dos concurseiros e à necessidade de estudar pra valer, transformou a feira em templo de estudo. Singelo, é verdade, mas silencioso, convidando à concentração e à aprendizagem. O silêncio tomou conta do espaço (assim como das outras bibliotecas da cidade), de tal maneira que um espirro passou a gerar constrangimento. Os ficheiros para pesquisa, antes anotada em pedacinhos de papel toscamente recortados, foram substituídos por computadores. Intensificou-se o cuidado com os frequentadores (nunca mais vi práticas indevidas ou amorais por lá) e substituíram-se as mesas e cadeiras antigas. A lateral externa esquerda do prédio ganhou um charme a mais - o mural em mosaico, com os versos de Nicolas Behr, poeta da cidade:

Imagem retirada do site Cris Guerra

Com barulho ou silêncio, a Biblioteca Demonstrativa de Brasília fez parte da minha vida. Na companhia dos amigos ou dos livros, dos funcionários cujos nomes infelizmente não sei (É a única biblioteca no mundo em que reconheço algumas faces, a mim muito familiares), vivi muitos momentos especiais lá. Guardo no coração os dois cursos de Contadores de Histórias que frequentei no período da noite, os quais nos levaram a viajar para o mundo dos contos de fadas e das narrativas orais e fantásticas. No último dia, todos narravam suas histórias, emprestadas ou inventadas, e era uma grande festa! Certa vez, me vi encurralada entre as prateleiras de livros, o final de uma das alas e meu recém ex-namorado acompanhado da nova namorada. Nesse dia, pensei que a Biblioteca não tinha sido legal comigo, mas na verdade ela me prendeu ali para me fazer enfrentar o inimigo de frente.
Por todas essas lembranças, foi com enorme tristeza que recebi a notícia da interdição da Minha Biblioteca no início deste ano. Por razões de segurança, até mesmo os funcionários foram proibidos de entrar, e a devolução dos livros têm sido feita por uma portinha dos fundos. Parece que uma reforma já está encaminhada. Que seja rápida! Que a burocracia em nosso país não deixe esse espaço, que faz parte da identidade da cidade, abandonado. Que logo logo aquela porta possa se abrir, que a Biblioteca possa receber seus milhares de leitores, novos e antigos, e continue a contar sua história. 
No dia 16 de maio, ocorreu um abraço simbólico da comunidade em torno do prédio. Como não pude participar, receba este texto como um abraço bem apertado, Biblioteca Demonstrativa, em sinal do meu apoio e gratidão. Quando eu voltar, espero te encontrar renovada e viva como sempre. Até breve!

Imagem retirada daqui

PS: Quem quiser ajudar a preservar a BDB, acesse este link e assine a petição pela sua reforma e modernização.

domingo, 26 de outubro de 2014

Dois dedos de prosa


Não dá um texto, mas dá dois dedos de prosa:

1) Ouvi dizer que há uma nova safra de jovens escritores brasileiros bastante boa e fui atrás deles. Como, pela distância, não posso me dar ao luxo de ir a uma livraria e ficar lá folheando os livros até decidir, minha pesquisa se limitou ao folhear virtual mesmo, àquelas páginas que os sites de venda dão de lambuja ao consumidor, só pra sentir o tom. Acabei encomendando o Luiz Ruffato e a Eliana Pedrosa, que não são tão jovens assim, mas cujas histórias me pareceram bem escritas e não muito rasas. Confesso meu preconceito em relação à aclamada Fernanda Torres. Valeria a pena fazer seu livro atravessar o continente para afinal descobrir que não me acrescentou nada? Há uma cena descrita pelo pretencioso João Paulo Cuenca, de uma mãe dando de mamar ao filho, que me causou, no mínimo, uma irritação profunda. A solução, para mim, é voltar aos clássicos da literatura brasileira contemporânea: estou lendo O Lustre, de Clarice Lispector, seu romance menos lido e considerado o 'mais difícil', e me preparando para explorar as obras completas de João Cabral de Melo Neto. Será que não está faltando aos nossos jovens escritores voltar a eles também?!

2) Quando morei em Portugal, descobri que José Saramago, ao contrário do que acontecia no Brasil, era muito mais criticado do que idolatrado em sua terra natal, principalmente devido a questões políticas e ideológicas. O fato de ele declarar-se comunista e ter-se exilado na Ilha de Lanzarotte, Espanha, após a desclassificação de seu romance O memorial do Convento em uma premiação, sempre geraram uma certa implicância de senhores vestidos em terno até para dormir e de senhoras com penteados recheados de Bombril. O debate político estabelecido no Brasil recentemente me lembrou isso. Além de desfezar amizades, triplicar o número de blocs no Facebook e escancarar, mais do que nunca, o coitado do voto secreto, revelou posições e ideologias que, independentemente do lado escolhido, causaram a indignação de fãs fervorosos. Por que cargas d'água Chico Buarque continua apoiando o PT? Neymar afinal é Aécio? Não pode ser!, dizem os fãs, descabelados. Semana passada, assistindo a uma entrevista do Ziraldo na televisão, decidi que não quero nem saber de sua escolha nestas eleições. Porque vou sempre me emocionar ao final de O Menino Maluquinho, quando ele cresce e se torna um cara legal...


quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Não consigo escrever

The Letter Writer, Jean-Baptiste Greuze

Não consigo escrever. Há dias que não escrevo uma linha. A escrita, que antes já andava perdida, estagnou no meio do caminho.
Quem nunca passou por isso? A inevitável situação do cronista (não que eu seja uma) que, sendo obrigado a publicar diariamente no jornal, um belo dia não consegue.
Deve ser este andar à deriva uma das diferenças entre mim e um verdadeiro escritor - aquele que acorda todo dia sabendo que vai escrever e segue uma rotina rigorosa, com hora marcada e local definido.
Jane Austen, por exemplo, acordava cedo, antes das outras mulheres da casa, e tocava piano. Às nove, ela preparava o café da manhã para a família e depois se sentava na sala para escrever, geralmente com sua mãe e sua irmã por perto, costurando silenciosamente. Após o jantar, que ocorria entre as três e quatro da tarde, havia momentos de bate-papo, jogos de cartas e chá; depois todos liam novelas em voz alta e Austin colocava todos a par de seus escritos daquela manhã.
Victor Hugo também escrevia pela manhã, em uma pequena escrivaninha que ficava em frente a um espelho. Ele se levantava de madrugada, despertado pelo disparo de arma de um forte próximo, tomava café puro e lia a carta enviada toda manhã por sua amante, Juliette Drouet, que vivia nove casas abaixo. Depois de ler as palavras apaixonadas de “Juju” para o seu “Cristo amado”, Hugo engolia dois ovos crus e escrevia até as 11 da manhã.
Já Mark Tawain ia para o seu estúdio após um café reforçado e ficava lá até por volta das cinco da tarde. Ele não almoçava e ninguém ousava interrompê-lo, escrevendo ininterruptamente por horas. Se precisassem dele, tocavam uma campanhia.
Stephen king escreve todos os dias do ano, até mesmo no seu aniversário e nos feriados, e não se permite parar até que atinja sua quota de 2.000 palavras por dia, o que vai em geral das oito a uma da tarde. Depois ele tem o tempo livre para leituras, cartas, família e TV.
Franz Kafka trabalhava em um instituto durante o dia e morava em um apartamento com muitas outras pessoas, por isso só escrevia tarde da noite, quando todos iam dormir. Começava por volta das 11 e, dependendo de sua força, inclinação e sorte, continuava até uma, duas, três horas, tendo acontecido uma vez de ir até as seis da manhã.
Leon Tolstoi precisava escrever todo dia, sem exceção, não somente pelo sucesso de seu trabalho, mas para ter uma rotina. Segundo seu filho, ele trabalhava em isolamento: não permitia que ninguém entrasse em seu estúdio, e as portas das salas próximas eram trancadas para que ninguém o interrompesse.
Charles Dickens precisava de absoluto silêncio. Em uma de suas casas, ele mandou instalar uma porta extra para barrar o barulho. Sua mesa de trabalho deveria ficar de frente para uma janela e seu material de escrita (caneta tinteiro e tinta azul), ao lado de vários ornamentos: um pequeno vaso de flores frescas, uma faca para abrir cartas e duas estátuas, uma de sapos gordos em duelo e outra de um senhor rodeado de cães.
George Orwell trabalhava no período da tarde em um sebo em Londres, mas era ele quem abria a loja pela manhã, o que lhe era muito conveniente, pois ele aproveitava esse intervalo para escrever.
Por fim, Simone de Beauvoir escrevia sozinha durante a manhã, até a hora do almoço, quando se encontrava com Jean-Paul Sartre para o almoço. À tarde, eles trabalhava juntos, em silêncio, no apartamento dele. 
Essas informações foram publicadas recentemente na revista Shortlist, retiradas do livro Rituals: how great minds make time, find inspiration and get to work (Rituais: como grandes mentes organizam seu tempo, encontram inspiração e conseguem trabalho), de Mason Curry (2013).
Quanta dedicação, perseverança e rigor um grande escritor precisa ter para evitar os brancos que a mente lhes prega. Quanto a mim, enquanto minha escrita não volta, só me resta expor as rotinas de escrita desses grandes mestres, tentar aprender com eles e acrescentar aos seus rituais as minhas próprias manias.
E, assim, aquilo que era minha não-escrita acaba por se tornar, meio que forçadamente, alguma escrita.

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Confusas estações

Four seasons, Luiza Vizoli

Essa energia primaveril que desperta no hemisfério sul nessa época do ano, em oposição à chegada do outono em terras do norte, onde me encontro, causa-me um inexplicável desconforto, uma certa sensação de deslocamento, uma dessintonia.
Verde, rosa e amarelo vibrantes. O azul do céu, sobre extensos gramados, águas transparentes e cristalinas - cenário perfeito para o desabrochar das pétalas, o inchar dos frutos, a brincadeira barulhenta dos passarinhos. O raio de sol toca a água do rio, criando um reflexo, um brilho que inebria e cega. Pele à mostra sentindo o acarinhar da brisa fresca e nova. Margaridas, tulipas, begônias. Peras, caquis, polpas suculentas. Desejo de ar livre, sol no rosto, borboletas.
Tudo isso é muito animador e, por meio das redes sociais, povoa meus pensamentos. Mas o que se vive por aqui nos Estados Unidos neste momento é a chegada de uma estação muito diferente. Novas  cores estão por vir - alaranjado, vermelho vinho, marrom, dourado. A cor sépia da fotografia envelhecida pelo passar do tempo. O céu muitas vezes cinza, o ar frio, exigindo já uma camada de lã sobre a pele. Galhos retorcidos, terra ressecada, folhas bailarinas em seu salto suave em direção ao nada. O aroma a abóboras, maçãs e especiarias se espalha por toda parte. Vontade de tomar leite com açúcar queimado, substituído, por pura conveniência, pelo leite insosso do Starbucks. Um desejo de recolhimento toma conta de todos, vontade de estar dentro, no aconchego do lar ou de um café, na companhia de um bom livro. 
A Primavera é uma menina ágil correndo pelos campos, molhando os pés no riacho, colhendo flores, cheia de atividade e muita vida pela frente. Suas pernas têm ânsia de movimento. Avançam sempre, sem parar. 
Já o outono é um idoso sentado no banco da praça, protegendo-se com seu cachecol, repousando os pés cansados de aventuras passadas, o olhar perdido e cheio de nostalgia, à espera do tempo, o seu tempo. 
A primavera é o encontro.
O outono é a despedida.
A primavera é o broto.
O outono, o maduro.
A primavera é o som do piano de Ludovico Einaudi
O outono é a voz de Frank Sinatra cantando Autumn Leaves (Folhas de Outono). 
Dois cenários que se misturam, desarmônicos, em minha mente…