segunda-feira, 30 de junho de 2014

Na bagagem, vestido azul e flores para colocar no cabelo

Pintura de Anouk Lacasse

Minha bagagem vai carregada.
Levo um vestido rodado azul celeste, para bailar ao ritmo da brisa do mar. Chapeu branco de abas largas e batom cor de rosa para colorir os lábios. Sandálias que deixam os dedos à mostra, mas já prevendo muitos pés descalços. Flores para espalhar pelos  cabelos soltos e embaraçados.
Também levo uma câmera fotográfica que, de maneira alguma, poderá substituir o olhar; apenas para registrar momentos felizes a serem revisitados anos depois. Alguns roteiros, claro, mas também a possibilidade de improvisação. Mapas com a função única de impedir a fuga pelo espaço sideral. Como guia, A menina do mar, de Sophia de Mello Breyner Andresen.
Minha bagagem inclui folhas avulsas em tom pastel e caneta de tinta lilás para registrar as sensações mais intensas. Muitos lápis de cor para desenhar os barcos a navegar no mar e massinha colorida para recriar em miniatura os cenários mais incríveis. Papeis estampados para construir borboletas e peixinhos de origami. Pinceis e tintas para tatuar o corpo com corações e florezinhas.
Para ouvir no caminho, um disco do Nando Reis, mas também a certeza de que haverá o momento de escutar outras vozes, outros cantos ou o silêncio das estradas. Para matar a sede, chá gelado de hortelã e, se der fome, biscoitos com gotas de chocolate.
Levo toalha de picnic para depois dos caminhos sinuosos percorridos junto ao mar, bolhas de sabão para soltar no topo da montanha e moedinhas para fazer pedido na fonte.   
Na minha bagagem, também vão o coração e a alma abertos, dispostos ao novo e ao desconhecido. A vontade de fugir da inércia e da estagnação. O desejo de novos cheiros e sabores, de caminhar ao ar livre, correr e quem sabe sentar no banco da praça só para olhar o mundo passar. A busca de um ritmo diferente, em câmera lenta, de um tempo suave e mais leve que faça uma faxina na alma e proponha a renovação do ser.
Assim vai a minha bagagem – abarratoda de leveza,  suavidade e esperança.




quarta-feira, 25 de junho de 2014

A arte de viajar

Traveling to let go, Sarah Morris

Viajar é uma arte. Colocar o pé na estrada vai muito além de sair de casa e deslocar-se para um outro lugar no espaço. Todo o processo, mesmo que não atentemos para isso, envolve uma série de significados mais profundos que podem nos levar ao aprendizado do outro, do desconhecido, e sobretudo de nós mesmos.
Em meio às ansiedades e angústias causadas pela iminência de uma viagem, me vi tentada a reler o capítulo da minha tese de mestrado que trata justamente dessa temática e gostaria de expor aqui alguns tópicos que considero interessantes (simplificados, é claro, e destituídos do aspecto literário). Espero que se identifiquem com alguns deles e reflitam sobre esse ato tão prazeroso e enriquecedor que é o  de viajar:

  • O desejo de viajar faz parte da condição humana. O homem é um ser errante por excelência. Seu desejo profundo de plenitude o coloca em movimento, o impulsiona para frente.
  • Viajar é, de uma maneira mais literal, deslocar-se pelo espaço, mas viajar é também uma busca, seja ela objetiva (a procura por lugares, pessoas, objetos, paisagens, povos), seja subjetiva (a busca do desconhecido, de conhecimento, prazer, mudança e até mesmo da paz interior).
  • Viajar é viver. A partida, o deslocamento e a chegada podem ser comparados com as fases da vida: o nascimento, o amadurecimento e a morte.
  • Viajar é autoconhecer-se. Cada passo dado, cada encontro, cada dificuldade encontrada pelo caminho podem levar à autoaprendizagem, ao aprimoramento pessoal, à transformação do indivíduo. 
  • Viajar é aprender. O contato com o desconhecido leva o viajante à aprendizagem sobre um lugar, uma nação, uma cultura e sobre o próprio ato de viajar.
  • Também se viaja no tempo. Visitar uma cidade histórica ou um lugar onde se esteve anteriormente traz à memória o passado, nos fazendo viver ou reviver um outro momento.
  • Mais do que o movimento, que é elemento essencial à viagem, talvez o mais importante seja o seu oposto - a paragem. É no momento da parada que se sente verdadeiramente o espaço, sintoniza-se com ele, reabastecem-se as energias e renovam-se as forças para continuar. “Viajar deveria ser outro concerto, estar mais e andar menos.”, afirmou José Saramago no livro Viagem a Portugal.
  • A partida estabelece o ritmo da viagem, podendo ser decisiva para todo o percurso. Partir retira o indivíduo da inércia e o predispõe à mudança, à abertura, ao novo. Partir liberta. Viajar é, nesse sentido, liberdade. 
  • O veículo utilizado também é simbólico, pois define a relação do viajante com a paisagem. Dependendo da velocidade do meio de transporte, vê-se mais, observa-se mais e, portanto, aprende-se mais. Vive-se. Um peregrino, assim, é íntimo do caminho por onde passa; é praticamente parte dele.
  • A bagagem pode ser bastante simbólica, definindo o sentido da viagem e revelando o objetivo do viajante. Aquele que pouco carrega segue livre; vai disposto às eventualidades do trajeto. O que parte com muita bagagem mal consegue caminhar. 
  • A ausência de bagagem também é significativa. Não trazer nada consigo torna secundária a fixação, priorizando-se o ato de viajar em si, a necessidade de deslocamento. Deixa-se para trás o velho; procura-se o absolutamente novo.
  • O ponto de chegada, em alguns casos, é a essência da viagem,  o seu objetivo último, correspondendo ao anseio humano pelo encontro, pela fixação.
  • Outras vezes, o que mais vale é o ato de viajar, não importando a chegada, o fim em si mesmo. A viagem autojustifica-se como projeto.
  • Também é possível que a chegada traga a necessidade de partir novamente, nem que seja uma partida para o interior, para dentro de si mesmo, em direção a um novo eu.
  • O regresso, ao fim de uma viagem, significa a volta ao princípio, o fechamento de um ciclo perfeito, como o fluxo e o refluxo do mar.
Para finalizar, o trecho final do livro de Saramago citado acima, que, para mim, resume a arte de viajar:

A viagem não acaba nunca. Só os viajantes acabam. E mesmo estes podem prolongar-se em memória, em lembrança, em narrativa. Quando o viajante sentou na areia da praia e disse: 
“Não há mais o que ver”, sabia que não era assim. O fim de uma viagem é apenas o começo de outra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na primavera o que se vira no verão, ver de dia o que se viu de noite, com o sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não estava. É preciso voltar aos passos que foram dados, para repetir e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre.

quarta-feira, 11 de junho de 2014

Professores que mudaram a minha vida - Parte III

Pormenor de mural da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
Heterônimos de Fernando Pessoa

Quem já teve o privilégio de ter um professor poeta?
Manuel Gusmão, meu professor de poesia portuguesa moderna e contemporânea da Universidade de Lisboa, não bastasse ser profundo conhecedor das literaturas universal e portuguesa, de teoria literária, literatura comparada e filosofia, tem essa característica muito, muito especial - é poeta, com vários livros publicados e ganhador de prêmios de poesia em Portugal.
Com ele, aprendi a observar a poesia não só do ponto de vista do leitor, mas sobretudo do fazedor de versos. Sempre começava a analisar o poema pelas informações mais elementares, primárias mesmo. Muito antes das palavras em si, importava a sombra que o poema deixa na folha em branco, o caminho escuro que o poema percorre no papel, os vazios, os espaços em branco, tudo isso trazendo informações importantes sobre o conteúdo. Aí sim as letras e os fonemas mais recorrentes, as palavras e sua classe gramatical, as repetições e o que se deixou de repetir, os versos, sua extensão e disposição, as rimas ou não-rimas, o poema em si, a musicalidade (muitas vezes ele via ali a presença de um grande compositor), para depois abordar as conexões do texto poético com o mundo: a tradição literária em que se insere, o diálogo com outros autores e poemas escritos anteriormente, as imagens criadas pelo poeta, o aspecto político, sociológico, religioso e até filosófico. "O mundo do poema e a construção poética do mundo" - era o que estava escrito no programa do curso.
Acredito que essa análise detalhada e cuidadosa refletia sua própria prática de escrita. Do branco do papel à filosofia, o acompanhávamos nessa viagem pelo ofício do verso e aprendíamos a importância do vazio, do não dito, do verso primitivo, até alcançarmos a mais consistente e profunda interpretação. Essa insistência na procura do sentido e de um aprofundamento me ensinou a importância do método, da releitura incansável, da procura incessante.
Além de leitor de poesia portuguesa, ele, como poeta e homem político atuante, é amigo pessoal dos principais autores e críticos literários portugueses contemporâneos. Então era comum que ele viesse para a aula acompanhado do principal especialista na obra do autor que seria estudado naquele dia. Quando não era o próprio poeta, amigo seu! Ele, que sabia tudo, deixava o outro falar. E o professor poeta, sentado ao lado do amigo poeta, fazia-se também aluno e ouvia com prazer o colega a falar de seu próprio poetar. 
Foi amigo de Saramago... O Zé. Era assim que o chamava.  Essa parceria me foi bastante conveniente, pois uma das entrevistas que Saramago deu a Gusmão definiu o tema da minha tese de mestrado. Nessa conversa, o vencedor do Nobel falava sobre a influência de Almeida Garrett (principal autor do romantismo português) em sua obra e sobre a necessidade de se desenvolver um estudo sobre isso. Sob a orientação do meu professor poeta, resolvi atender ao pedido do mestre. E Manuel Gusmão, em meio àquela série de ideias desconexas que eu lhe apresentara, vislumbrou um tema possível e uma linha de trabalho.
Por tudo isso, assim como ele humildemente fazia, não posso deixar de dar-lhe voz. Seguem, abaixo, alguns fragmentos de diferentes poemas de Manuel Gusmão, retirados do livro migrações do fogo, publicado pela Editorial Caminho. Obrigada, poeta!


Por terra que de todas as cores do mundo - 
mesmo aquelas que inventamos - a si própria se pinta
andamos hoje;

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Ou então é um poeta que regressa velho e cego do exílio;
já não reconhece as vozes, habita o desequilíbrio. Gralhas
devoram-lhe a prosódia, e tentando ler o que lhe falta ainda
escrever ele tropeça; e tropeçando dança. Enquanto tu lês
sob a pedra vítria e fria do céu a névoa que lhe apago os [olhos.
Tu vês: o migrante beija a morte na boca. E é ele
quem te diz: corta a minha mão e escreve com ela
um poema que seja teu.

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Assim buganvílias, dragoeiros, girassóis e glicínias
iam sendo as teclas desse herbário sonoro
de que a magnólia inventou a arte.

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Guardarei em mim a tua figura vacilante firme
a desaparecer entrando nela.
Guardarei essas imagens e esquecê-las-ei tão fundo
quanto puder, até as ter no cinema do sangue, nas
mãos que te inventaram, até as ter em dedos.
E mais tarde voltarei então ao lugar da tua ausência
e sílaba por sílaba cantarei por ti
cantarei em direcção a ti
as claras imagens em que morrias.
E escreverei no piano
das águas
as provas de que viveste, de que estiveste vivo
um dia

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Escuta: Há essa mulher no litoral dos mundos. Ela recebe e
distribui a luz que sobe depois dos dilúvios descendo. Ela
espera a sétima onda, a penúltima sílaba do verso:

Ela canta a canção das crianças que vão morrer ainda.

E contra a perfeição enlouquecida do mar
ela atira pedras que são pássaros certeiros, nuvens voando
à beira do despertar dos rios. Ela faz a origem sem origem.




quarta-feira, 4 de junho de 2014

Professores que mudaram a minha vida - Parte II


Víamos o professor se dirigir para a sala de aula, andando pelo corredor, desconcertadamente, em zigue-zague, por entre os alunos agitados e barulhentos. Parecia que surgia do nada, vindo de um mundo distante, e ali, diante de nós, de repente, se materializava. Passava timidamente, pequeno, magro, franzino mesmo, com o livro (um só, era esse o material que ele carregava) debaixo do braço, sem olhar para nenhum de nós e muito menos dizer bom dia. Entrava naquele cubo fechado e sem janelas que era a sala de aula, sentava-se na ponta da cadeira, à mesa que ficava à esquerda do quadro negro (no qual ele jamais escreveu), colocava o livro sobre a mesa, cruzava a perna esquerda sobre a direita, puxava o maço de cigarro do bolso, o isqueiro, acendia o maldito, abria o livro na primeira página, e aí sim, levantava a cabeça lentamente, em nossa direção (o que não quer dizer que olhasse para nós) e começava.
Daquela figura que só víamos através da fumaça do cigarro e que provavelmente também nos enxergava, ali sentados, imóveis, como seres translúcidos, fantasmagóricos, vieram os ensinamentos mais valiosos que recebi no que se refere à análise do texto literário.
Após uma ou duas aulas introdutórias, em que ele teorizava sobre os conceitos de hermenêutica e epifania, as aulas centravam-se única e exclusivamente no texto literário. Dali em diante, o professor desaparecia em meio à fumaça branca, densa e opaca e quem discursava eram Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Adonias Filho e Autran Dourado. Munidos dos nossos exemplares, acompanhávamos o mestre em uma viagem por aquelas obras especiais, priorizando o ponto de vista narrativo, a capacidade do autor contemporâneo   de colocar o mundo do personagem diante dos olhos do leitor. Ele ia desvendando essa linguagem linha a linha, nos mostrando na prática (não apenas por meio de teorias vazias e sem sentido) o segredo ali guardado.
E assim transcorriam as aulas, semana após semana, repetidamente. Aquele ritual lento e inebriante que nos levava a uma espécie de embriaguez. Lembro-me apenas de um episódio que rompeu com essa rotina – o de um colega que, em meio às análises brilhantes do Grande Sertão: Veredas, perguntou: “Mas e aí? Quem vence? Deus ou o diabo?” Quem conhece a obra entende o que essa pergunta significa. E ele, muito nervoso, pra não dizer irado, disse: “Você quer que eu responda com uma palavra o que eu levei a vida toda para descobrir?”
Após duas horas de leitura intensa, ele fechava o livro, levantava-se vagarosamente da cadeira, não me lembro se se despedia (acho que não), saía da sala e desaparecia como pó. Nós nos deixávamos ficar, tranquilos, calmos, silenciosos, digerindo os grandes sertões e corações selvagens da vida até termos coragem de enfrentar o mundo real novamente.
Quando me tornei professora do Ensino Médio e percebi que, para ser aceita pelos alunos, eu tinha de me comportar como comediante em sala de aula,  eu sempre pensava no professor Ronaldes de Melo e Sousa, de Literatura Brasileira Contemporânea, e me lembrava de que ele, com toda a sua timidez e ensimesmamento, escondendo-se atrás de um nevoeiro, não precisava desses atributos extras. Eram os livros, o conteúdo e a relevância das lições que importavam.
É... se a professora Hilda (sobre a qual escrevi no post anterior) me mostrou um caminho, o Ronaldes de Melo e Sousa, além de me ensinar a regra de ouro da literatura, me alertou para qual caminho não seguir, me mostrou que a sala de aula não era o meu lugar (como professora, claro, pois adoro lá estar como aluna). 
Obrigada, professor Ronaldes.