quarta-feira, 11 de junho de 2014

Professores que mudaram a minha vida - Parte III

Pormenor de mural da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
Heterônimos de Fernando Pessoa

Quem já teve o privilégio de ter um professor poeta?
Manuel Gusmão, meu professor de poesia portuguesa moderna e contemporânea da Universidade de Lisboa, não bastasse ser profundo conhecedor das literaturas universal e portuguesa, de teoria literária, literatura comparada e filosofia, tem essa característica muito, muito especial - é poeta, com vários livros publicados e ganhador de prêmios de poesia em Portugal.
Com ele, aprendi a observar a poesia não só do ponto de vista do leitor, mas sobretudo do fazedor de versos. Sempre começava a analisar o poema pelas informações mais elementares, primárias mesmo. Muito antes das palavras em si, importava a sombra que o poema deixa na folha em branco, o caminho escuro que o poema percorre no papel, os vazios, os espaços em branco, tudo isso trazendo informações importantes sobre o conteúdo. Aí sim as letras e os fonemas mais recorrentes, as palavras e sua classe gramatical, as repetições e o que se deixou de repetir, os versos, sua extensão e disposição, as rimas ou não-rimas, o poema em si, a musicalidade (muitas vezes ele via ali a presença de um grande compositor), para depois abordar as conexões do texto poético com o mundo: a tradição literária em que se insere, o diálogo com outros autores e poemas escritos anteriormente, as imagens criadas pelo poeta, o aspecto político, sociológico, religioso e até filosófico. "O mundo do poema e a construção poética do mundo" - era o que estava escrito no programa do curso.
Acredito que essa análise detalhada e cuidadosa refletia sua própria prática de escrita. Do branco do papel à filosofia, o acompanhávamos nessa viagem pelo ofício do verso e aprendíamos a importância do vazio, do não dito, do verso primitivo, até alcançarmos a mais consistente e profunda interpretação. Essa insistência na procura do sentido e de um aprofundamento me ensinou a importância do método, da releitura incansável, da procura incessante.
Além de leitor de poesia portuguesa, ele, como poeta e homem político atuante, é amigo pessoal dos principais autores e críticos literários portugueses contemporâneos. Então era comum que ele viesse para a aula acompanhado do principal especialista na obra do autor que seria estudado naquele dia. Quando não era o próprio poeta, amigo seu! Ele, que sabia tudo, deixava o outro falar. E o professor poeta, sentado ao lado do amigo poeta, fazia-se também aluno e ouvia com prazer o colega a falar de seu próprio poetar. 
Foi amigo de Saramago... O Zé. Era assim que o chamava.  Essa parceria me foi bastante conveniente, pois uma das entrevistas que Saramago deu a Gusmão definiu o tema da minha tese de mestrado. Nessa conversa, o vencedor do Nobel falava sobre a influência de Almeida Garrett (principal autor do romantismo português) em sua obra e sobre a necessidade de se desenvolver um estudo sobre isso. Sob a orientação do meu professor poeta, resolvi atender ao pedido do mestre. E Manuel Gusmão, em meio àquela série de ideias desconexas que eu lhe apresentara, vislumbrou um tema possível e uma linha de trabalho.
Por tudo isso, assim como ele humildemente fazia, não posso deixar de dar-lhe voz. Seguem, abaixo, alguns fragmentos de diferentes poemas de Manuel Gusmão, retirados do livro migrações do fogo, publicado pela Editorial Caminho. Obrigada, poeta!


Por terra que de todas as cores do mundo - 
mesmo aquelas que inventamos - a si própria se pinta
andamos hoje;

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Ou então é um poeta que regressa velho e cego do exílio;
já não reconhece as vozes, habita o desequilíbrio. Gralhas
devoram-lhe a prosódia, e tentando ler o que lhe falta ainda
escrever ele tropeça; e tropeçando dança. Enquanto tu lês
sob a pedra vítria e fria do céu a névoa que lhe apago os [olhos.
Tu vês: o migrante beija a morte na boca. E é ele
quem te diz: corta a minha mão e escreve com ela
um poema que seja teu.

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Assim buganvílias, dragoeiros, girassóis e glicínias
iam sendo as teclas desse herbário sonoro
de que a magnólia inventou a arte.

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Guardarei em mim a tua figura vacilante firme
a desaparecer entrando nela.
Guardarei essas imagens e esquecê-las-ei tão fundo
quanto puder, até as ter no cinema do sangue, nas
mãos que te inventaram, até as ter em dedos.
E mais tarde voltarei então ao lugar da tua ausência
e sílaba por sílaba cantarei por ti
cantarei em direcção a ti
as claras imagens em que morrias.
E escreverei no piano
das águas
as provas de que viveste, de que estiveste vivo
um dia

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Escuta: Há essa mulher no litoral dos mundos. Ela recebe e
distribui a luz que sobe depois dos dilúvios descendo. Ela
espera a sétima onda, a penúltima sílaba do verso:

Ela canta a canção das crianças que vão morrer ainda.

E contra a perfeição enlouquecida do mar
ela atira pedras que são pássaros certeiros, nuvens voando
à beira do despertar dos rios. Ela faz a origem sem origem.




2 comentários:

  1. Querida... Como eu te percebo! As suas aulas eram tão especiais! E que bom foi partilhá-las contigo.

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    1. Filipa, meu mestrado não seria o mesmo sem a sua presença; e minha passagem por Portugal também não. Beijo enorme!

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