quarta-feira, 25 de junho de 2014

A arte de viajar

Traveling to let go, Sarah Morris

Viajar é uma arte. Colocar o pé na estrada vai muito além de sair de casa e deslocar-se para um outro lugar no espaço. Todo o processo, mesmo que não atentemos para isso, envolve uma série de significados mais profundos que podem nos levar ao aprendizado do outro, do desconhecido, e sobretudo de nós mesmos.
Em meio às ansiedades e angústias causadas pela iminência de uma viagem, me vi tentada a reler o capítulo da minha tese de mestrado que trata justamente dessa temática e gostaria de expor aqui alguns tópicos que considero interessantes (simplificados, é claro, e destituídos do aspecto literário). Espero que se identifiquem com alguns deles e reflitam sobre esse ato tão prazeroso e enriquecedor que é o  de viajar:

  • O desejo de viajar faz parte da condição humana. O homem é um ser errante por excelência. Seu desejo profundo de plenitude o coloca em movimento, o impulsiona para frente.
  • Viajar é, de uma maneira mais literal, deslocar-se pelo espaço, mas viajar é também uma busca, seja ela objetiva (a procura por lugares, pessoas, objetos, paisagens, povos), seja subjetiva (a busca do desconhecido, de conhecimento, prazer, mudança e até mesmo da paz interior).
  • Viajar é viver. A partida, o deslocamento e a chegada podem ser comparados com as fases da vida: o nascimento, o amadurecimento e a morte.
  • Viajar é autoconhecer-se. Cada passo dado, cada encontro, cada dificuldade encontrada pelo caminho podem levar à autoaprendizagem, ao aprimoramento pessoal, à transformação do indivíduo. 
  • Viajar é aprender. O contato com o desconhecido leva o viajante à aprendizagem sobre um lugar, uma nação, uma cultura e sobre o próprio ato de viajar.
  • Também se viaja no tempo. Visitar uma cidade histórica ou um lugar onde se esteve anteriormente traz à memória o passado, nos fazendo viver ou reviver um outro momento.
  • Mais do que o movimento, que é elemento essencial à viagem, talvez o mais importante seja o seu oposto - a paragem. É no momento da parada que se sente verdadeiramente o espaço, sintoniza-se com ele, reabastecem-se as energias e renovam-se as forças para continuar. “Viajar deveria ser outro concerto, estar mais e andar menos.”, afirmou José Saramago no livro Viagem a Portugal.
  • A partida estabelece o ritmo da viagem, podendo ser decisiva para todo o percurso. Partir retira o indivíduo da inércia e o predispõe à mudança, à abertura, ao novo. Partir liberta. Viajar é, nesse sentido, liberdade. 
  • O veículo utilizado também é simbólico, pois define a relação do viajante com a paisagem. Dependendo da velocidade do meio de transporte, vê-se mais, observa-se mais e, portanto, aprende-se mais. Vive-se. Um peregrino, assim, é íntimo do caminho por onde passa; é praticamente parte dele.
  • A bagagem pode ser bastante simbólica, definindo o sentido da viagem e revelando o objetivo do viajante. Aquele que pouco carrega segue livre; vai disposto às eventualidades do trajeto. O que parte com muita bagagem mal consegue caminhar. 
  • A ausência de bagagem também é significativa. Não trazer nada consigo torna secundária a fixação, priorizando-se o ato de viajar em si, a necessidade de deslocamento. Deixa-se para trás o velho; procura-se o absolutamente novo.
  • O ponto de chegada, em alguns casos, é a essência da viagem,  o seu objetivo último, correspondendo ao anseio humano pelo encontro, pela fixação.
  • Outras vezes, o que mais vale é o ato de viajar, não importando a chegada, o fim em si mesmo. A viagem autojustifica-se como projeto.
  • Também é possível que a chegada traga a necessidade de partir novamente, nem que seja uma partida para o interior, para dentro de si mesmo, em direção a um novo eu.
  • O regresso, ao fim de uma viagem, significa a volta ao princípio, o fechamento de um ciclo perfeito, como o fluxo e o refluxo do mar.
Para finalizar, o trecho final do livro de Saramago citado acima, que, para mim, resume a arte de viajar:

A viagem não acaba nunca. Só os viajantes acabam. E mesmo estes podem prolongar-se em memória, em lembrança, em narrativa. Quando o viajante sentou na areia da praia e disse: 
“Não há mais o que ver”, sabia que não era assim. O fim de uma viagem é apenas o começo de outra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na primavera o que se vira no verão, ver de dia o que se viu de noite, com o sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não estava. É preciso voltar aos passos que foram dados, para repetir e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre.

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