Golfinhos resolveram dar o ar da graça na costa de Nápoles.
Baleias tomaram conta do Estreito de Messina, entre a Itália e a Sicília.
Uma família de patinhos têm sido vista passeando pelos jardins do Vaticano.
Os pássaros tomaram conta da cidade de Roma; sua cantoria estridente preenche a casa quando se abre a janela.
Uma fina camada de grama está crescendo entre as pedras da Piazza Navona.
As águas dos canais de Veneza estão tranquilas e cristalinas, espelhos de seus palazzos e ruas vazias.
O Papa, sempre com a fisionomia cansada e tensa, agora tem aparecido tão mais descansado, tão mais sereno e calmo...
Muitas belezas se tem visto no mundo atualmente, mas o que mais me impressiona, a ponto de me fazer chegar às lágrimas, é o silêncio. Sim, o silêncio...
Prezo tanto por ele... O procuro tanto a cada minuto da minha vida... Geralmente só o encontro, ou tenho a impressão de encontrá-lo, no minuto seguinte a que entro na casa absolutamente vazia. Fecho a porta, pouso as chaves sobre o aparador, fecho os olhos por um segundo, respiro fundo e aproveito aqueles segundos sagrados de silêncio... Depois eu mesma me movimento pela casa e faço algum barulho, ouço os passos do vizinho de cima, a televisão alta no apartamento ao lado, as buzinas lá fora, a movimentação no corredor e caio na real: o silêncio não existe.
Mas agora sim... É possível andar pela cidade e ouvir o silêncio.
Se pudesse, sairia por aí à sua procura. Caminharia pelas ruas menos comerciais (prefiro sempre esses caminhos), chegaria até o rio, pararia sobre a ponte, bem no centro, e ficaria ali por algum tempo, olhando as águas do Tevere, pensando sobre para onde nos levarão esses caminhos aquosos. Seguiria rente ao rio até chegar próximo ao Castel Sant’Angelo, em frente àquelas barraquinhas que vendem souvenirs. Elas estarão fechadas, não haverá vendedores nem turistas, mas, não sei por que, as árvores ali são mais bonitas, elegantemente debruçadas sobre o rio, fazendo-lhe reverência. Sento-me num dos banquinhos e me deixo ficar, escutando o silêncio e apreciando o balanço das folhas.
Há um ponto específico da ponte Umberto I de onde se tem a vista perfeita da Igreja de São Pedro. Era pra lá que eu me dirigiria. E me deixaria ficar, olhando ao longe a cúpula em simetria, sem ninguém a esperar ansiosamente para ocupar o meu lugar, o ponto mais desejado. Não contente com a distância, me dirigiria à Piazza São Pedro, caminhando lentamente, respirando fundo, sentindo o vazio que me permite pertencer verdadeiramente ao ambiente. Atravessaria a rua tranquilamente, sem disputar os milímetros entre as pessoas. E de longe veria a igreja, imponente, deslumbrante, emoldurada pelo entardecer, a me receber de braços abertos. A aproximação é lenta como o caminhar, e a chegada é mesmo um abraço tranquilo, reconfortante, caloroso. Tudo isso devido à aura do silêncio... Sim... o silêncio tem aura. Uma luz brilhante, vivaz e energética que o rodeia e nos enche de uma energia vital impressionante. Acho que naquela praça, rodeada de silêncio, eu não resistiria e dançaria. Dançaria ao som do silêncio...
Depois, restaurada e extasiada, eu andaria e andaria pela cidade, passeando sozinha pelas ruelas do Centro Histórico, observando os palazzos, as igrejas, as fachadas dos museus e, claro, fotografando cada detalhe... O sonho do fotógrafo, mesmo o amador como eu, é fotografar a cidade vazia, sem turistas, sem carros passando. Muitos acordam de madrugada para chegar antes de todos e encontrar a situação ideal para a foto perfeita. Agora eu o faria a qualquer hora do dia. Ninguém me observaria, ninguém me olharia com curiosidade e desconfiança pensando: Por que diabos ela está tirando foto dessa porta velha e sem graça? E eu poderia focar no desenho daquela rachadura milenar, da qual brota uma pequena folha verde claro. Haveria sim algum ruído: um vizinho que conversa, da janela, com o morador da frente, uma mamma italiana que grita com o bambino, a sirene abafada de uma ambulância que passa veloz ao longe, os acordes de ‘Volare’ soando na vitrola... Mas esses sonidos não roubariam a beleza desse momento de paz e solidão.
Nesse dia, eu voltaria pra cada feliz, porque teria procurado e encontrado o tão desejado silêncio. Entre as multidões, eu pareço andar sempre em fuga, acelerada. No vazio, me sinto bem, minha respiração se torna mais lenta e completa, encontro uma paz tranquilizadora.
Além desses acontecimentos simplórios do mundo quotidiano – possíveis apenas no sonho e na imaginação –, um outro não tão singelo - e verdadeiro - me impressionou: Andrea Bocelli cantando sozinho na Catedral de Milão absolutamente vazia. Meu Deus! Que beleza! Em meio à solidão e ao vazio, a grandiosidade da Catedral se faz ainda maior. O colorido de seus altos vitrais torna-se mais intenso. As estátuas parecem balbuciar algum segredo. E a voz do Bocelli cantando Ave Maria trespassa as paredes robustas antiquíssimas, ecoando até o infinito. Em um determinado momento, surpreendendo a todos, ele começa a caminhar pelo longo corredor central, em direção à porta de entrada. Esse homem saramaguiano – cego, mas lúcido – traça sem hesitar o caminho que parece sem fim, vai até a porta e, atravessando o portal, defronta-se com o espaço gigantesco todo para ele, pronto para receber a sua divina voz. Diante da praça dabsolutamente vazia, do espaço monumental, do pátio que ainda está se acostumando à sua novíssima realidade, ele canta, canta alto, projeta sua voz sobre o vazio. E o mais absolutamente extraordinário é que, mesmo com o tenor cantando a plenos pulmões, tanto dentro da igreja quanto fora, não se rompe o silêncio. É pleno.
O silêncio do atual momento em que vivemos parece tão significativo que resiste ao mais belo canto. No mundo pandêmico, som e silêncio tornaram-se irmãos.