sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

As últimas palavras




“Afinal, talvez ainda vá escrever outro livro.”, registrou José Saramago em suas anotações de agosto de 2009, pensando no que seria o seu Alabardas, alabardas, espingardas, espingardas, livro inacabado, publicado pela Companhia das Letras no final de 2014.
Mesmo sabendo que a empreitada não passaria de algumas dezenas de páginas, o leitor apaixonado pela obra deste que é um dos maiores escritores da língua portuguesa escuta essas palavras como se um milagre fosse. O milagre da realização do que antes parecia impossível – o prazer indescritível de correr novamente à livraria (sim, até há muito pouco tempo não existiam as livrarias virtuais, muito menos a pré-venda, que deixa reservado na nuvem o exemplar antes mesmo de ele ser lançado), pegar o mais recente livro do autor preferido, aguardar ansiosamente pelo local e momento ideais (solenes o suficiente, dada a grandiosidade do objeto), abri-lo cuidadosamente na primeira página e deliciar-se com as primeiras palavras escritas por aquelas mãos sagradas.
É claro que sempre se pode reler as obras de Saramago como se fosse a primeira vez. Sentidos diversos e surpreendentes não faltarão. Mas o ineditismo do seu novo livro, a leitura virgem, primeira, as inúmeras possibilidades que neste momento se abrem, tudo isso é como reviver. Ressuscitar. Não o autor, que este não morre nunca; o leitor mesmo, que renasce e se revigora totalmente diante do prazer absoluto do momento.

O homem chama-se artur paz semedo e trabalha há quase vinte anos nos serviços de faturação de armamento ligeiro e munições de uma histórica fábrica de armamento conhecida pela razão social de belona s.a., nome que, convém aclarar, pois já são pouquíssimas as pessoas que se interessam por estes saberes inúteis, era o da deusa romana da guerra. Nada mais apropriado, reconheça-se.

Aí estão, logo no início, algumas marcas características do autor. A curta descrição do personagem principal (afinal não é em prol dessas convenções narrativas que o autor escreve), interrompida logo pela informação histórico-mitológica e pelo juízo crítico (Pois... esses saberes outrora valiosos tornaram-se inúteis), além da temática, que já se revela social e atual - a fabricação e o comércio de armas.  
Para aqueles acostumados à linguagem e ao ritmo narrativo do autor, a história desse homem (o homem, sempre o homem!) que vai em busca de um passado humano e transgressor da fábrica de armas vai-se desenvolvendo de maneira muito rápida, assustadoramente veloz. E em pouquíssimo tempo, tem-se a consciência de que faltam apenas poucas páginas, poucas linhas, poucas palavras. O reencontro com a escrita desse autor tão único, tão absolutamente fascinante, tão consciente do tempo cruel em que vivemos começa a chegar ao fim. A voz desse que foi um dos poucos homens contemporâneos a ter coragem de falar o que tem de ser dito está prestes a se calar, levando consigo o seu leitor, acordado do sonho.

, Para lhe falar francamente, tudo me parece demasiado, eu aqui sentado, eu a procurar documentos no arquivo, eu a falar com o adminstrador-delegado da empresa, eu um simples chefe de faturação menor, sem ofício nem benefício, Ofício, tem, não se queixe, Nada que outra pessoa não pudesse fazer

E segue-se um vazio, um silêncio devastador, antecedido do que não chegou a ser suficiente para saciar o desejo do saudoso leitor e seguido de um branco absoluto, angustiante. Essa última unidade de sentido do texto não chega a ser finalizada. O diálogo fica inconcluso. Que mais se diria, por quantas linhas se estenderia, até se atingir o ponto final? O que mais caberia nas páginas, nos capítulos seguintes?
E por que ele teria parado um diálogo que ainda não parece estar terminado justamente nessa fala? O esperado não seria concluir pelo menos a conversa para depois fazer uma pausa e tratar de outros assuntos? O que se passou com o José no momento em que ele decidiu interromper a escrita ou foi levado a isso, levantando-se de sua cadeira, afastando-se o suficiente para não mais voltar ao texto? O vento mais forte que obrigou a fechar a janela? Pilar a aproximar-se carinhosamente chamando para o almoço? Um certo cansaço ou a necessidade de esfriar a cabeça?  O cão que veio em busca de um afago e o desconcentrou? Na verdade, nada disso importa, apenas a certeza do silêncio, de uma página em branco que não pôde ser preenchida e jamais será.
A nós, leitores, nos resta o prazer infinito da releitura, a aprendizagem contínua extraída de tantas lições e a lembrança  do aperto de mão após o autógrafo tão esperado.