quarta-feira, 4 de junho de 2014

Professores que mudaram a minha vida - Parte II


Víamos o professor se dirigir para a sala de aula, andando pelo corredor, desconcertadamente, em zigue-zague, por entre os alunos agitados e barulhentos. Parecia que surgia do nada, vindo de um mundo distante, e ali, diante de nós, de repente, se materializava. Passava timidamente, pequeno, magro, franzino mesmo, com o livro (um só, era esse o material que ele carregava) debaixo do braço, sem olhar para nenhum de nós e muito menos dizer bom dia. Entrava naquele cubo fechado e sem janelas que era a sala de aula, sentava-se na ponta da cadeira, à mesa que ficava à esquerda do quadro negro (no qual ele jamais escreveu), colocava o livro sobre a mesa, cruzava a perna esquerda sobre a direita, puxava o maço de cigarro do bolso, o isqueiro, acendia o maldito, abria o livro na primeira página, e aí sim, levantava a cabeça lentamente, em nossa direção (o que não quer dizer que olhasse para nós) e começava.
Daquela figura que só víamos através da fumaça do cigarro e que provavelmente também nos enxergava, ali sentados, imóveis, como seres translúcidos, fantasmagóricos, vieram os ensinamentos mais valiosos que recebi no que se refere à análise do texto literário.
Após uma ou duas aulas introdutórias, em que ele teorizava sobre os conceitos de hermenêutica e epifania, as aulas centravam-se única e exclusivamente no texto literário. Dali em diante, o professor desaparecia em meio à fumaça branca, densa e opaca e quem discursava eram Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Adonias Filho e Autran Dourado. Munidos dos nossos exemplares, acompanhávamos o mestre em uma viagem por aquelas obras especiais, priorizando o ponto de vista narrativo, a capacidade do autor contemporâneo   de colocar o mundo do personagem diante dos olhos do leitor. Ele ia desvendando essa linguagem linha a linha, nos mostrando na prática (não apenas por meio de teorias vazias e sem sentido) o segredo ali guardado.
E assim transcorriam as aulas, semana após semana, repetidamente. Aquele ritual lento e inebriante que nos levava a uma espécie de embriaguez. Lembro-me apenas de um episódio que rompeu com essa rotina – o de um colega que, em meio às análises brilhantes do Grande Sertão: Veredas, perguntou: “Mas e aí? Quem vence? Deus ou o diabo?” Quem conhece a obra entende o que essa pergunta significa. E ele, muito nervoso, pra não dizer irado, disse: “Você quer que eu responda com uma palavra o que eu levei a vida toda para descobrir?”
Após duas horas de leitura intensa, ele fechava o livro, levantava-se vagarosamente da cadeira, não me lembro se se despedia (acho que não), saía da sala e desaparecia como pó. Nós nos deixávamos ficar, tranquilos, calmos, silenciosos, digerindo os grandes sertões e corações selvagens da vida até termos coragem de enfrentar o mundo real novamente.
Quando me tornei professora do Ensino Médio e percebi que, para ser aceita pelos alunos, eu tinha de me comportar como comediante em sala de aula,  eu sempre pensava no professor Ronaldes de Melo e Sousa, de Literatura Brasileira Contemporânea, e me lembrava de que ele, com toda a sua timidez e ensimesmamento, escondendo-se atrás de um nevoeiro, não precisava desses atributos extras. Eram os livros, o conteúdo e a relevância das lições que importavam.
É... se a professora Hilda (sobre a qual escrevi no post anterior) me mostrou um caminho, o Ronaldes de Melo e Sousa, além de me ensinar a regra de ouro da literatura, me alertou para qual caminho não seguir, me mostrou que a sala de aula não era o meu lugar (como professora, claro, pois adoro lá estar como aluna). 
Obrigada, professor Ronaldes.



2 comentários:

  1. Amélia, fui sua colega nessa mesma disciplina. Adorava seu cabelão ruivo. De fato, você fez o retrato que tenho do professor Ronaldes. Grande beijo.
    Étel Teixeira.

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    1. Etel!!!! Que maravilha reencontrá-la, mesmo que virtualmente, ainda mais fazendo um passeio pela sala de aula do professor Ronaldes. Muito bom!! Obrigada! Beijo grande!

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