Mesmo com a excessiva doçura nas feições, na voz, no olhar e nos gestos –
verdadeira, autêntica, natural –, ela parecia uma menina absolutamente normal.
Normal no sentido de que acorda de manhã não muito cedo, toma chá ao invés de café com leite, sai pra trabalhar com lenço de gatinhos no
pescoço, lê um best seller no ônibus,
sabe de cor as canções da Cássia Eller, evita as pedras pretas das calçadas de
Copacabana, toma sopa de ervilhas com hortelã às seis da tarde e escreve haicais de
madrugada no computador.
Até que o mistério acontece... Bem à minha frente no café, depois de
bebericar o espesso chocolate quente e lambiscar as migalhas do pan au chocolat que ficaram no prato de
porcelana, parece desviar levemente a atenção das palavras que eu insisto em
proferir e, com uma concentração lenta, mas ímpar, inicia um processo de
revelações infinitas. O olhar acompanhando o
movimento do corpo, tão focado quanto a respiração, as mãos delicadas, retira da bolsa marrom claro
uma bolsa de tamanho médio de cor azul-turquesa. Abre o zíper tão devagar que
nem se ouve o ruído e, de dentro, retira uma outra bolsa ainda menor meio cor
de rosa, e outra amarela do mesmo tamanho, e desta outra supercolorida com
motivos de desenho animado, e outra pequena, e outra pequenina, e mais outra
bolsinha superminúscula em formato de coração, e outra, e outra, e outra,
tantas que nem sei. Perdi as contas, confusa em meio àquela imensidão de compartimentos
e possibilidades.
Comentei sobre a beleza de uma e de outra – gostei especialmente
daquela com personagens de desenho animado – e indaguei alguma coisa lateral,
não querendo adentrar muito na intimidade daquela menina. Sim! Quer coisa mais
íntima do que bolsa de mulher? O que dizer daquelas inúmeras bolsas dentro da bolsa?
É intimidade demais! Fiquei quieta.
Mas a menina, percebendo meu interesse, não demorou muito e começou
a abrir cada bolsa, cada bolsinha, revelando um
mundo diverso.
Escova de cabelo e liguinhas; escova de dentes, fio dental e pasta;
lenços de papel secos e umidecidos; celular; chaves da casa e do escritório;
remédio pra enxaqueca e Florais de Bach; creme para as mãos e protetor solar; bloco de papel e canetas coloridas
fosforescentes; cartão de crédito e cash;
moedas – algumas antigas, sem valor; documento de identidade e título de
eleitor; espelhinho redondo de abrir e batom cor de boca; as poesias completas de
Mário Quintana – de bolso – com um recibo de supermercado escondido entre as
páginas, no verso a indicação de um romance de Mia Couto; uma fotografia antiga.
Tudo arrumadinho, dividido por categorias, cada uma em sua pequena bolsa, que se
encaixava numa bolsa maior, depois em outra e outra, para por fim esconderem-se
todas na bolsa mãe principal.
Por abrir, havia ainda uma bolsa de tamanho médio, verde-esmeralda, que ela deixou
por último. Olhou bem nos meus olhos, demorou o movimento, enfim abriu
lentamente o zíper e de lá foi tirando, aos poucos: uma feliz lembrança de
infância; os planos de viajar para a Grécia; a tristeza de um amor perdido; a
sombra no banco da praça; a sensação fresca da cachoeira; um pôr do sol
esquecido; a gota de chuva; o encontro de domingo; uma estrela do céu; o
conforto na poltrona da sala; o giro dos planetas; o sabor a castanhas do bolo; o banho quente ao fim do dia; o sonho de chegar à Lua.
Abriu todas as bolsas. Mostrou o que tinha dentro. Revelou. E
revelou-se.
Meus assuntos quotidianos perderam valor... Se é que um dia
tiveram. Melhor calar, observar e aprender com a maneira doce, suave e colorida
como ela organizava o quotidiano e por fim a vida. Sim! A bolsa, arrumada
daquela maneira, era uma forma de vida, uma visão de mundo.
Um dia ouvi algo assim: se quer melhorar de vida, organiza suas
gavetas. Agora entendo: se quer ter uma vida mais suave, ajeita sua carteira.
Após dizer tchau, sacou da bolsa, não sei de qual parte, não pude
ver (apesar de ela saber onde tudo está de cor e salteado), uma daquelas caixinhas de Tic-Tac, enfeitada com estrelinhas douradas que
ela mesma colara, e dela retirou, perfeitamente enroladinho, o fone de ouvido.
Estendeu, procurou indecisa a direita e a esquerda, colocou nos ouvidos
cuidadosamente, deu um tempo pra música começar e pôs-se a andar, sem antes
virar-se para mim de olhos sorridentemente fechados e soltar no ar um beijo
estalado.
Nossa! Que texto mais lindo! Me emocionei. Parabéns!
ResponderExcluirObrigada! Inspirado em uma prima super querida e delicada que reencontrei em dezembro depois de muitos anos sem vê-la... 😉
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