domingo, 12 de março de 2017

Nenhuma mania, nenhuma fotografia




Nas contações de histórias da família, fala-se muito sobre minha avó paterna, aquela mulher franzina, de lenço no cabelo, forte e brava que criou os sete filhos sozinha, que um dia, com raiva do meu avô, atirou as jaboticabas que colhera para ele ladeira abaixo, que fumava tanto que até o médico recomendou que continuasse pra não morrer de abstinência e que não queria nenhuma neta com o seu nome porque todas as amélias são sofredoras.
Mas e minha avó materna? O que se lembra dela? Apenas que se chamava Percília e que morreu quando minha mãe tinha quatro anos de idade. Só isso... Nada mais se sabe. Nenhuma descrição. Nenhuma história triste ou engraçada. Nenhuma mania. Nenhuma fotografia. Nenhum anel. É como se essa mulher praticamente não existisse.
Como isso é possível?
Da próxima vez, nas rodas de bate-papo e risaiadas sem fim, vou reivindicar a sua lembrança. Vou trazer à tona a história da minha avó, aquela que deu a vida à minha mãe, que a gerou, a trouxe em seu ventre durante nove meses, a deu à luz. Isso já basta, é muito e é tudo! Sem ela, nenhum de nós existiria como existimos, não seríamos o que somos, da maneira como somos.
O que há dela em minha mãe? O encanto pela leitura, que a fazia ler até de madrugada à luz de velas no colégio interno onde viveu durante muitos anos? A alegria da juventude, que a levava a bailar pelos salões das festas de família com o primeiro par feminino que aparecesse (feminino, porque meu pai não dançava e morria de ciúmes se fosse masculino)? O jeito meio esbaforido de querer fazer as coisas rápido, servir a mesa num minuto, ajeitar tudo pra depois recostar-se no sofá? O apreço por brincos e colares? O cerrar de dentes quando fica brava? O hábito de dar beliscões doloridos para repreender? Será que essa minha mãe veio dela?
E o que deixou de ficar dela em minha mãe devido à sua morte prematura? Pobre mãe, no auge da sua maternidade, as filhas ainda tão pequenas, percebendo aos poucos que morria... Pobre filha, órfã aos quatro anos, sem compreender, sendo separada das irmãs e levada para sempre... Teria alguém explicado a ela o que acontecera? Que sua mãe morrera e por quê? Poderia ela entender ou simplesmente deixar a ausência tomar conta de seus sonhos de infância? Brincava essa minha mãe menina? Corria pelos campos? Vivia? Recebia carinho? Cuidados? Ou se deixava ficar, quietinha, esperando a mamãe voltar...
Imagino-a – minha avó – magra, mas não muito, de pele branca como a da minha mãe, cabelos negros como os da minha mãe, no ombro, meio ondulados, usando saia abaixo dos joelhos e blusa clara de botões. Vejo-a de pé, deixando-se ficar um pouco mais atrás, desfocada na imagem, parada, em silêncio, deixando-se ver, mas não muito.
Ah... Como eu queria ter uma foto sua sequer, já mulher adulta, já mãe da minha mãe. A imagem que minha mãe teve ao nascer e em seus primeiros anos de vida. Ou quem sabe um livro que fora seu. Uma presilha de cabelo. Um lenço perfumado.
Como mãe pertencente à sua linhagem, levo muito de você, mas não tenho consciência plena dessa herança. A maneira como penteio o cabelo das minhas filhas talvez... Algum traço da minha fisionomia... Os dedos longos das mãos...
Hoje eu te reverencio. Me curvo diante de ti, te agradeço a vida que me deste e aos meus irmãos por meio da minha mãe. Se pudesses, serias tão orgulhosa da sua filha – minha mãe: da maneira otimista como ela viveu a vida, do sorriso em seu rosto, de como foi e é querida por todos os amigos e familiares, da sua elegância, da fé em Deus que a move, da dedicação à igreja e à família, da capacidade de multiplicar o pão nos momentos mais difíceis, da educação que nos deu, do poder de sua oração diária pelos filhos e netos. E como se orgulharia de nós, netos e bisnetos... Somos uma família bonita e especial... Graças também a ti, que nos possibilitou a vida! Obrigada! Obrigada! Obrigada!
Não se penitencie. Não tens culpa. Tudo o que acontece, mesmo a dolorosa ausência, precisa acontecer. Tem o seu significado e nos faz crescer. Precisávamos viver essa ausência.
Com cuidado, respeito, lágrima nos olhos e as mãos fortes, seguras, junto seus pés retos lado a lado, pouso suas mãos sobre o seu peito, como em uma oração, cerro suas pálpebras com delicadeza e faço o sinal da cruz.
Descanse em paz.
E que nós que aqui estamos continuemos nosso caminho, cheios de vida (VIDA!), até quando tenha de ser.
Amém!


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