segunda-feira, 10 de março de 2014

A onda

Ocean Stray, Carlin Blahnik


Estou convencida de que alguns livros escolhem os leitores. Foi assim com Wave (A onda), de Sonali Deraniyagala, publicado nos Estados Unidos pela Alfred A. Knopf e em Portugal pela Vogais. 
Primeiro chegou ao meu e-mail por meio de um jornal. Depois alguém o indicou em uma página do Facebook. Sempre que eu entrava em alguma livraria, lá estava ele, em posição de destaque, entre os mais lidos (sim, é um daqueles best sellers dos quais os formados em Letras como eu fogem como diabo da cruz). Colocou-se diante de mim, veio atrás, insistiu. Quando eu me escondia atrás da prateleira daquelas obras que ninguém lê, ele aparecia, não sei como, insinuando-se para mim. Até que não teve jeito: me rendi à capa preta, ao título curto, ao tom poético que parecia não combinar com o assunto.
Em resumo, Wave é a autobiografia de uma sobrevivente ao tsunami que devastou a costa do Sri Lanka em dezembro de 2004, no qual ela perdeu os pais, o marido e os dois filhos pequenos

Ponto final


Vazio


Silêncio

O que mais dizer sobre uma situação como essa? O que escrever? O que pensar? O que comentar sobre o sofrimento dessa mulher que inesperadamente perdeu as pessoas mais importantes em sua vida, incluindo os dois filhos, ainda crianças? Eu poderia parar este post por aqui. Nada que eu escreva vai expressar a tristeza, a dor, a força trágica de um acontecimento como esse. Nenhuma tentativa de me colocar em seu lugar vai me permitir descrever a sensação de vazio dessa mulher que, por algum motivo que foge à compreensão, precisa continuar vivendo.
Posso começar dizendo o quão impressionante é a descrição  inicial do momento em que o tsunami acontece: a sensação de que algo não vai bem (o mar muito mais próximo do hotel do que o usual), a tentativa de fuga, a correria do hotel com a família, o desejo de proteger os filhos, o olhar para trás e ver a água se aproximando, a água tomando conta de tudo, a perda do controle, a perda da consciência…  
Quando pensamos que isso basta, que pior não pode acontecer, Sonali acorda e se dá conta, meu Deus!, de que está viva. Essa mulher é então tomada por um terrível sentimento de culpa. Por que só ela teria sobrevivido? Sobreviver era a maior punição que ela poderia receber. O maior desejo era de que aquela onda gigante a tivesse levado para sempre também. 
Não há corpos para chorar, velar, enterrar. Assim como Antígona, a quem foi proibido o ritual de enterrar seus mortos, impedindo suas almas de fazer a travessia para o outro mundo, de Sonali é tirado o direito da despedida, impedindo sua alma de fixar-se, de encontrar-se no mundo de cá.
Para ela, só há uma saída: buscar evidências, necessárias mas dolorosas, da vida. Algo em que se agarrar para continuar a quase impossível tarefa de viver. E isso ela vai encontrar na casa da família em Londres, onde tudo está intacto: as roupas, os pertences, os brinquedos, o quintal, o escritório, as fotos, os cheiros. Tudo isso traz à memória imagens muito vivas de todos e é assim, ao meu ver, que ela começa a ensaiar alguma recuperação.
A outra maneira? A escrita. Escrever sobre o que se passou foi para Sonali uma estratégia de sobrevivência. Registrar tudo em detalhes foi a maneira que ela encontrou de lembrar, velar seus mortos e recomeçar. Seu livro é a concretização do passado perdido, necessário para que o presente se torne palpável novamente, e o fututo possível, qualquer que ele seja. A escrita como salvadora - o divisor de águas entre a morte e a vida.
Penso que Wave veio até mim para me dar uma lição e me mandar calar. No momento em que a adaptação a uma nova vida, os problemas quotidianos e a saudade representavam  minha tempestade pessoal, esse livro foi como uma onda a me derrubar e a mostrar que, na verdade, eu precisava dar graças por tudo: pela vida, a minha, a das minhas filhas e do meu marido. O resto se resolve.
Obrigada, Sonali.

7 comentários:

  1. Assim como a Sonali, com seu Wave, buscou e encontrou você, vou tentar encontrá-los também. Obrigada.

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    1. Vale a pena, Ana Lúcia. É um depoimento muito emocionante!

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  2. Chorei ao leu seu post, minha amiga, não sei se pelo aflorado sentimento de medo diante do desconhecido que já está traçado em minha vida...Só quem sabe a dor da perda é quem já a sentiu uma vez e absolutamente HUMANO rejeitar qualquer hipótese de um novo vazio. Não sei se seria fraqueza, mas acho que não teria força para uma leitura como essa: densa, tensa e intensa...

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    1. Paty, você é sim uma fortaleza!!! Nenhuma onda te derruba!!!!

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    2. A gente tenta...amiga. A vida é maravilhosa, porém não é fácil...

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  3. Tenho orgulho e agradeço a Deus por ter me proporcionado um belo convívio ao teu lado, minha amiga de longas datas. É um prazeroso aprendizado ler o que você escreve. Você é uma incrível mulher!! Amei seu blog, vou acompanhá-lo sempre que puder...

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    1. Espero te encontrar aqui sempre!!! É de leitores sensíveis como você que preciso.

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