Pai e filha, de Michael Dudok |
Recentemente, meus irmãos me atribuíram uma tarefa que parecia muito simples, mas que se revelou um tanto quanto complicada: escrever uma pequena biografia sobre o meu pai.
Nas primeiras tentativas, não me saíam da cabeça os versos de Fernando Pessoa, sob o pseudônimo de Alberto Caeiro, que dizem: "Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia,/ Não há nada mais simples/ Tem só duas datas - a da minha nascença e a da minha morte./ Entre uma e outra cousa, todos os dias são meus.". Então me vi na seguinte situação: ou eu seguia Pessoa e resumia a vida de meu pai a duas datas, a um epitáfio, ou eu precisaria de muito mais do que uma simples página, talvez de uma vida toda, para escrever a sua biografia.
Como, por exemplo, reduzir os pais do meu pai, personagens de tantas histórias, a apenas dois nomes? Como não contar que minha avó era uma mulher guerreira, muito brava e que nunca quis ver seu nome repetir-se em alguma das netas porque, para ela, todas as amélias eram sofredoras? Que meu avô tinha uma doçura encantada, molhava o pão no vinho e, quando acabava as refeições, a mesa tinha de ser desfeita rapidamente porque os restos de comida o incomodavam? Essas memórias têm de ser simplesmente apagadas de uma biografia como a que eu me prestava a escrever?
Como omitir que meu pai foi uma criança quieta, de poucas palavras, que brincava sozinho no canto do quintal? Que começou a trabalhar aos oito anos de idade para ajudar em casa e que sentiu muita falta do pai quando este partiu, fechando-se ainda mais em seu próprio mundo?
Como não mencionar que ele mentiu sobre sua data de nascimento para que a minha mãe não soubesse que ia se casar com um rapaz mais jovem? Que ele, ainda um pretendente, olhava a foto dela afixada em um mural e a enchia de beijos apaixonados? E que estávamos todos justamente falando disso e rindo muito quando o telefone tocou trazendo a notícia de sua morte? E sobre o silêncio que se seguiu, não posso falar?
Como não comentar a força que sua presença paterna representava? O respeito, a prontidão, o temor com que seguíamos suas ordens, mesmo depois de adultos?
Como não dizer que meu pai, sempre muito calado, era na verdade um contador de histórias? Que, quando começava a rememorar fatos da infância e da adolescência, os contava com muito gosto, enfaticamente, saindo-se sempre vencedor, herói nas aventuras da vida?
Que, aos domingos, antes do almoço, colocava Altemar Dutra e Nelson Gonçalves no toca-fitas e assoviava as melodias, às vezes cantava baixinho?
Que, ao ver um recém-nascido, o segurava pelos dedinhos, levantando-o bem alto, para desespero da mãe?
Que, ao despedir-se de mim no dia em que se mudou, repetiu a mesma frase que dissera à minha irmã vinte anos atrás, pedindo-me para não o decepcionar?
Que era muito emotivo? Que era sempre com lágrimas nos olhos que ele passava as noites de Natal e que recebia as boas novas?
Que, quando, sem mais nem menos, perguntei quantos netos ele tinha, ele matou logo a charada e percebeu que mais um estava caminho?
Que, quando nos encontramos na UTI de um hospital pela última vez, eu tinha na barriga uma nova vida?
Que, naquele dia em que até os céus choravam a sua morte, um cortejo longo e lento se arrastou pelas ruas sinuosas da cidade?
Que a saudade, a falta, o vazio, o silêncio, principalmente nos momentos em que se precisa de um conselho, de uma palavra, são doloridos demais?
Que minha filha chorou copiosamente quando soube que o vovô queria muito conhecê-la, mas não foi possível? Que a história se repetiu?
Tantas palavras, tantas lembranças que completariam a biografia do meu pai… Mas tenho de me limitar a menos de uma página, me ater a algumas poucas datas e friamente cumprir a tarefa.
Só me resta guardar a verdadeira biografia do meu pai dentro de mim e pensar que, como nos versos de Pessoa, todos os outros dias são meus.
Como, por exemplo, reduzir os pais do meu pai, personagens de tantas histórias, a apenas dois nomes? Como não contar que minha avó era uma mulher guerreira, muito brava e que nunca quis ver seu nome repetir-se em alguma das netas porque, para ela, todas as amélias eram sofredoras? Que meu avô tinha uma doçura encantada, molhava o pão no vinho e, quando acabava as refeições, a mesa tinha de ser desfeita rapidamente porque os restos de comida o incomodavam? Essas memórias têm de ser simplesmente apagadas de uma biografia como a que eu me prestava a escrever?
Como omitir que meu pai foi uma criança quieta, de poucas palavras, que brincava sozinho no canto do quintal? Que começou a trabalhar aos oito anos de idade para ajudar em casa e que sentiu muita falta do pai quando este partiu, fechando-se ainda mais em seu próprio mundo?
Como não mencionar que ele mentiu sobre sua data de nascimento para que a minha mãe não soubesse que ia se casar com um rapaz mais jovem? Que ele, ainda um pretendente, olhava a foto dela afixada em um mural e a enchia de beijos apaixonados? E que estávamos todos justamente falando disso e rindo muito quando o telefone tocou trazendo a notícia de sua morte? E sobre o silêncio que se seguiu, não posso falar?
Como não comentar a força que sua presença paterna representava? O respeito, a prontidão, o temor com que seguíamos suas ordens, mesmo depois de adultos?
Como não dizer que meu pai, sempre muito calado, era na verdade um contador de histórias? Que, quando começava a rememorar fatos da infância e da adolescência, os contava com muito gosto, enfaticamente, saindo-se sempre vencedor, herói nas aventuras da vida?
Que, aos domingos, antes do almoço, colocava Altemar Dutra e Nelson Gonçalves no toca-fitas e assoviava as melodias, às vezes cantava baixinho?
Que, ao ver um recém-nascido, o segurava pelos dedinhos, levantando-o bem alto, para desespero da mãe?
Que, ao despedir-se de mim no dia em que se mudou, repetiu a mesma frase que dissera à minha irmã vinte anos atrás, pedindo-me para não o decepcionar?
Que era muito emotivo? Que era sempre com lágrimas nos olhos que ele passava as noites de Natal e que recebia as boas novas?
Que, quando, sem mais nem menos, perguntei quantos netos ele tinha, ele matou logo a charada e percebeu que mais um estava caminho?
Que, quando nos encontramos na UTI de um hospital pela última vez, eu tinha na barriga uma nova vida?
Que, naquele dia em que até os céus choravam a sua morte, um cortejo longo e lento se arrastou pelas ruas sinuosas da cidade?
Que a saudade, a falta, o vazio, o silêncio, principalmente nos momentos em que se precisa de um conselho, de uma palavra, são doloridos demais?
Que minha filha chorou copiosamente quando soube que o vovô queria muito conhecê-la, mas não foi possível? Que a história se repetiu?
Tantas palavras, tantas lembranças que completariam a biografia do meu pai… Mas tenho de me limitar a menos de uma página, me ater a algumas poucas datas e friamente cumprir a tarefa.
Só me resta guardar a verdadeira biografia do meu pai dentro de mim e pensar que, como nos versos de Pessoa, todos os outros dias são meus.
Ouça o poema Biografia, de Fernando Pessoa, aqui, e assista ao curta de animação do qual foi retirada a imagem deste post aqui.
O Amélia! Que coisa mais linda as suas palavras. Só você, com sua cultura e sensibilidade poderia descrever tão bem o Sr. Paulinho. Parabéns! Eu me emocionei.
ResponderExcluirAlessandra, foi exatamente isso que senti ao escrever aquela biografia… Tudo isso me veio à cabeça naquele momento. Um exercício de escrita difícil pra caramba!
ExcluirFiquei com lágrimas nos olhos, tia Amélia. Lindo!! Nossa, bateu uma saudade!!
ResponderExcluirAndressa, pelo menos nos próximos 9 meses você vai chorar até com comercial de margarina. Beijos, minha amada!!!
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