
Certa vez, ao nos mudarmos de casa, além de umas ratazanas que andavam por lá, encontramos um sabonete pela metade, uma cortina velha, um vaso de flor vazio, uma fotografia 3x4, uma caixa de revistas antigas e - por mais difícil que seja de acreditar - uma pequena biblioteca. Isso mesmo: em um dos quartos, bem no fundo, à
esquerda, havia um quartinho suspenso, uma espécie de sótão, na verdade um
aproveitamento do vão da escada, repleto de livros.
Visto
de fora, com a porta fechada, parecia um armário qualquer, mas bem mais
alto e mais fundo. Para alcançar qualquer coisa, tínhamos de entrar no espaço usando uma escadinha de três degraus, de madeira clara, que parece ter sido confeccionada
especialmente para esse fim (era exatamente da altura que ia do chão à
porta). Dentro, estantes por todos os lados. O teto era bem baixo - cabiam no máximo duas pessoas sentadas, encolhidas. Uma lâmpada lateral iluminava as leituras e aquecia bastante também, chegando às vezes a ser insuportável. Chamávamos o pequeno quadrado de “o buraco” - apelido bem pouco simpático tendo em vista o conteúdo.
Não me lembro do momento em que descobrimos o esconderijo e da primeira vez em que entrei nele, mas sei que, durante toda a minha adolescência, eu passava muitas horas lá dentro, arrumando e desarrumando tudo, desvendando os mistérios revelados por aquele tesouro. Havia muitos livros escolares,
do ensino fundamental, que de certa maneira foram úteis nos meus estudos, mas também muita literatura, principalmente a infanto-juvenil e os
clássicos da literatura brasileira. Li
boa parte deles e sei que esse buraco contribuiu em muito para a relação que
tenho hoje com os livros. Antes de morar nessa casa, eu já gostava de ler, mas
havia poucos livros em casa. Depois disso, não consigo mais me lembrar da minha
vida sem a presença dos livros e a visita constante a
bibliotecas e livrarias.
Esse buraco dizia muito sobre os antigos moradores da casa. Com
certeza, eram pais que compravam livros para os filhos, que valorizavam a leitura
ou pelo menos apoiavam os projetos escolares (nessa escola lia-se bastante). Uma das filhas era a jovem Gisela.
Lembro-me claramente de sua caligrafia infantil, do nome redondo e gordo
estampado em etiquetas nas capas, seguido da série escolar. Gisela 2º ano. Gisela 4º ano. Além das histórias contadas nos livros, eu acompanhava também a história
de vida dessa menina, companheira de leitura nas longas tardes juvenis,
encolhidas as duas naquele cantinho mágico que nos levava para mundos encantados.
Quem diria que, em um país de poucos leitores, isso seria possível –
um espaço como esse, totalmente atípico, recheado de livros, deixados de
presente para o novo morador? Por que não os teriam levado consigo? O fato é
que nós poderíamos ter jogado tudo no lixo (infelizmente, em nosso país, muitos
o fariam) ou doado para uma biblioteca, mas, de certa forma, minha mãe também tinha consciência da importância deles em nossas vidas e lá os
manteve, para a minha alegria. Foi lá também que guardamos os poucos livros que tínhamos e os que viríamos a adquirir, e o buraco tornou-se oficialmente a biblioteca da casa.
A vida segue, somos obrigados a mudar de casa, de cidade, de país e
a deixar para trás parte da nossa bagagem. Talvez, em minha próxima mudança, assim, meio displicentemente,
eu deixe cair um livro da minha estante, que ficará esquecido por um tempo. Será uma
lembrança ao próximo morador (Quem sabe não contribuirá para construir a sua história?) e uma homenagem à Gisela, que me deixou de
presente o seu tesouro literário.
Amélia! Este texto se refere àquele buraco daquela casa de Brasília?
ResponderExcluirNossa! Entrei muitas vezes lá... aproveitei vários livros para ensinar meus filhos. Era muito legal.
Boa lembrança.
Isso mesmo, Alessandra! Não era uma pequena biblioteca?!
Excluir