sábado, 19 de novembro de 2022

Meu irmão, meu ídolo!



A primeira paixão da minha vida não foi a boneca recebida de presente de Natal. Não foi o personagem da história infantil favorita. Não foi o menino bonito da escola elementar. Nada disso. Foi meu irmão Mauro. 

Minha mãe conta que, no dia em que eu nasci, ele, com onze anos, foi me visitar no hospital. Era proibido visita de criança naquela época, mas ele entrou escondido, levando uma flor roubada do jardim do vizinho, e conseguiu ver a irmãzinha temporona, depois de uma leva de cinco rapazes.

Quando criança, ele era meu ídolo! Era a alegria da casa, sempre bem disposto, de bem com a vida. Ficava impressionada quando andava com ele pelas ruas, pois ele cumprimentava pessoas desconhecidas, com um bom dia e um sorriso no rosto, na maior naturalidade. Eu achava aquilo o máximo!

Sempre foi um irmão muito carinhoso. Me tratava como uma princesa. Dizia que, em alguns anos, eu iria pousar para a Playboy. Ele seria meu agente e ficaríamos ricos. Vê se pode?!

Na transição entre a infância e a adolescência, enquanto os demais irmãos já tinham partido da casa dos meus pais para estudar, trabalhar ou se casar, o Mauro continuava a morar conosco. Se eu precisasse de companhia para ir a uma festa, ele ia comigo. Se eu precisasse comprar um livro da escola num lugar distante, ele me levava. Na minha formatura do ensino médio, ele foi meu par. 

Foi ele quem me levou ao primeiro show de música da minha vida: da Blitz ("Você não soube me amar…"). Certa vez, participou de um festival de música na escola onde estudava e cantou “Há dois passos do paraíso”, maior sucesso desse grupo na época. Ele ficou em segundo lugar, mas acho que gostei mais da performance dele – meu ídolo - do que do Evandro Mesquita. Anos mais tarde, me levou no show do Michael Jackson, em São Paulo. Esses episódios foram inesquecíveis, mas hoje percebo que o mais importante era que, ao comprar os ingressos, ele sempre se lembrava de mim. 

Tinha orgulho de apresentá-lo às minha amigas. Elas o achavam lindo e muito legal! Mas eu não gostava que ficassem muito chegadas, pois eu morria de ciúmes dele. Quando chovia forte e ele estava em casa na hora do almoço, ia me buscar na escola vestido com uma capa de chuva amarelo ovo que trouxe de uma viagem. Quando começavam as primeiras gotas, minhas amigas comentavam, já em tom de gozação: “Tá chovendo. Será que o Mauro vem te buscar com aquela capa hoje?” E vinha. Olhávamos para o lado do estacionamento e avistávamos ao longe uma mancha amarela, correndo na nossa direção, até nos alcançar, me estender um guarda-chuva e me levar em direção ao carro. Atrás, eu só ouvia o som alto das risadas das minha amigas. Eu morria de vergonha, queria cavar um buraco no chão e me esconder, mas no fundo gostava de ter um irmão tão divertido e legal. 

Não conseguia imaginar minha vida sem ele. Até que um dia ele decidiu se mudar para os Estados Unidos. Iria passar um tempo lá. Não compreendi muito o significado daquilo até quase o momento da partida. Naquele dia, acordei com um nó na garganta. Mal olhava nos olhos dele, que me procuravam, animados, mas com um ar de melancolia. Fugi o dia todo, observando às escondidas a confusão de malas e preparativos para a viagem.

Quando foi chegando o momento de ele ir para o aeroporto, me tranquei no quarto e fingi que estava dormindo. Imagina... eu nunca dormia cedo, mas apaguei a luz, me embrulhei no cobertor e fiquei imóvel, quase sem respirar, para evitar a despedida. De repente percebi que a porta se abria. Era ele, que olhou, esperou por alguns minutos, até chamou pelo meu nome, mas, como eu fingia que não acordava, acabou indo embora. A porta se fechou, aguentei mais alguns instantes e, depois de ouvir o carro se distanciando, caí num chovo convulsivo, desesperado, descontrolado. Por sorte todos estavam envolvidos com sua partida e não perceberam. Mas posso dizer que foi uma das dores mais fortes que senti na vida.

Um vazio enorme se formou na nossa casa e nas nossas vidas. Só nos falávamos de vez em quando pelo telefone, o que não amenizava nem um pouco a saudade imensa. Diz ele que, quando a saudade apertava do lado de lá, chegava à janela e cantava bem alto, para todos ouvirem, as músicas de Milionário e José Rico.

Depois de três anos que pareceram o infinito, chegou o dia do seu retorno. Que emoção! Lembro bem da espera no saguão do aeroporto. Quanta ansiedade! Finalmente! Acho que era próximo do Natal, e o meu maior presente com certeza seria ter meu irmão amado de volta.

Foi uma festa! Churrasco, cerveja, cantoria. Na mala, ele trazia muitas novidades: roupas, produtos, CDs que sequer existiam no Brasil. E muitas histórias para contar.

Claro que, depois de tanto tempo fora, tentando a vida de diversas maneiras, vivendo uma cultura totalmente diferente, ele voltou mudado também. Parecia mais maduro, mais duro com a vida e um pouco desconfiado em relação a tudo e a todos. Até o cheiro dele era outro. 

Eu tampouco era uma criança. Tinha crescido, me tornado uma moça. Ele era muito, muito ciumento. Não era nem um pouco simpático com meus pretendentes. Quando tive meu primeiro namorado, ele não aceitava, ficava de cara feia para mim e era mal educado com o rapaz. 

Logo o tal carinha terminou comigo sem dó nem piedade e foi logo tratando de arranjar outra. Foi o meu segundo maior sofrimento da vida. Um dia, cheguei da escola chorando, tristíssima, porque o vi com a menina no ponto de ônibus. Quando eu disse o porquê das melosas lágrimas, todos ficaram com pena, dizendo que iria passar. Meu irmão Mauro falou: "Eu avisei!" E chorou junto comigo. 

O tempo passou. Tive de me acostumar com o fato de que ele partiria algumas outras vezes. Casou-se com uma bela mulher – "a mais bonita da Bolívia", nas palavras dele. Teve dois filhos “hermosos”, como ele gosta de dizer. Formou uma linda família. 

Em outros aspectos da vida, levantou-se e caiu algumas vezes. Parece que o destino lhe prega algumas rasteiras de vez em quando. Mas está sempre disposto a recomeçar. É corajoso aos extremos. Meu marido costuma dizer que ele é empreendedor! 

Agora, no auge da maturidade, quando a vida exige que o homem vá desacelerando, que fique mais quieto, em segurança e conforto, ele se atirou em mais uma aventura. Sozinho, sem a família, decidiu passar um tempo distante novamente, à procura de uma vida melhor. A história se repete, só que dessa vez de surpresa, sem que esperássemos, sem nenhuma chance mesmo de nos despedirmos. Não foi preciso que eu me escondesse debaixo do cobertor. Quando soubemos, já estava lá. Não quis nos preocupar. 

Outro dia, postou uma imagem da sua mesa de cabeceira: de um lado, nosso pai e nossa mãe, abraçados, ambos sorrindo, numa noite feliz de Natal; de outro, uma linda foto em família, com a esposa e os filhos, em algum momento especial. 

Meu irmão, esse pequeno altar que você criou na sua mesa de cabeceira tem muito significado. Nossos pais foram aqueles que te deram o bem maior - a vida, a quem você deve ser sempre grato. Eles representam todos aqueles que vieram antes deles, os nossos antepassados, a quem também devemos agradecer e venerar. 

Veja como nossos pais estão satisfeitos nessa foto, com um sorriso espontâneo, aberto e verdadeiro nos lábios. Eles estão felizes, dentre outros motivos, porque você existe, é um filho maravilhoso e amoroso, tem a coragem que seus antepassados tiveram de tentar uma vida nova, em um lugar distante. Eles e os pais deles e os avós deles reconhecem seu amor, Mauro, agradecem e te libertam para seguir o seu caminho. 

Sua família mais próxima – esposa e filhos – é o outro pilar. Mesmo longe agora, estão ao seu lado. Caminham junto com você. Oram pela sua segurança e sucesso. Por eles você deve prosseguir em busca dos seus sonhos.

Imagine-se numa estrada: você ao centro; um pouco atrás nossos pais; ao lado sua mulher e seus filhos; à frente aquilo que você quer e precisa conquistar, sejam objetivos financeiros ou afetivos. Levando isso em consideração, vá em frente, ao encontro de conquistas, sucesso, prosperidade.

Um dia, quando você já estava aí, tive uma visão. Sério mesmo. Uma intuição muito forte. Via você vencedor. Dono do seu próprio negócio. Um homem de sucesso. Sua família feliz ao redor. E nossos pais, ao longe, te olhando, com sorrisos nos rostos, orgulhosos. Assim como nós, seus irmãos. Acredite! Você é capaz!

Saiba que te admiramos muito. 

Você será para sempre meu ídolo! 

Feliz aniversário!

 

domingo, 9 de maio de 2021

Colares, contas e corais

 



Minha mãe sempre gostou de usar colar. Geralmente aqueles de bolas grandes e coloridas, combinando com os brincos. Quando pensamos em comprar um presente pra ela, a primeira coisa que nos vem à mente é, sem dúvida, um colar. Tentamos dar a volta a esse impulso, afinal é preciso ter uma certa criatividade para presentear, mas, no final, acabamos caindo na tentação da certeza de agradar e compramos um colar. Justamente por isso, ela tem muitos. Abre-se a porta do guarda-roupa e veem-se, pendurados como terços no altar da igreja, os mais variados tipos: prateados, dourados, coloridos, de couro, de plástico e, claro, pérolas, muitas pérolas...

Quando mais jovem, ela não saía de casa sem o adereço, nem que fosse para ir à venda da esquina. Não se rendia às havaianas, dava sempre um jeitinho no cabelo e tascava colar e brinco, sempre arrumadinha. Tanto que, ela mesma me contou, foi acusada pelas más línguas da vizinhança de que queria se exibir para os homens da rua. Claro que não. Era só cuidado mesmo ou, palavrinha comum atualmente - autocuidado. E lá ia ela, de sacolas plásticas repletas de economias e de contas coloridas no pescoço.

Lembro-me em especial de um de bolas de vidro de vários tamanhos, predominando o cor de rosa clarinho, alternadas por bolinhas douradas. O fecho era lindo, daqueles de encaixar, cravejado de pedrinhas imitando diamante, e eu abria, fechava, abria, fechava, encantada com o clique delicado que ouvia. Como ela ficava linda quando o usava! E eu vira e mexe estava com ele nas mãos, olhando, admirando, imaginando, com muito cuidado para não quebrar. 

Já eu nunca fui de usar colar. Na adolescência, quando eu ia sair, minha mãe me olhava, observava o look dos pés à cabeça, hesitava um pouco, mas não resistia e, com um sorriso irônico nos lábios, dizia: “Nem um colarzinho?!” Eu negava terminantemente e ela ficava bem decepcionada, querendo ver em mim um pouco daquele brilho especial que coloria e alegrava o seu dia.

Em homenagem à minha mãe, nos últimos tempos (o que significa depois de muito tempo), resolvi comprar uns colares, decidida a usá-los no meu dia a dia. Então, numa viagem, comprei uma gargantilha de corais sicilianos, que são como umas pedrinhas irregulares, em tom meio alaranjado, e resolvi usar já no mesmo dia. Escolhi um vestido neutro, para dar destaque ao colorido do colar. Passei um batom na mesma tonalidade, coral, e, ao olhar-me no espelho, me senti bonita. Tirei uma selfie, mandei para a minha mãe e saí pra jantar feliz da vida. Não tenho dúvidas de que era por causa do colar.

Quando cheguei em casa, li o comentário materno: “É bem delicado!” Entendi perfeitamente o significado: era demasiadamente delicado para ela. Claro, para agradar, eu deveria ter escolhido um de bolas grandes...

Um dia, procurando na internet, vi um colar de bolas. Eram feitas de argila, confeccionadas artesanalmente. Não muito grandes e não tão coloridas. Os tons eram acinzentados, mais claros, mais escuros, com duas unidades em preto, uma só em branco e apenas uma bolinha menor dourada, que para mim dava um toque especial à composição. O cordão era de couro branco, bem delicado, e, delimitando o conjunto de sete ou oito bolas, havia duas continhas também douradas. Amei aquele colar. Era a minha versão mais discreta daquele de vidro cor de rosa da minha mãe, que eu tanto admirava.

Ficou guardado durante muitos meses no armário, até que um dia acordei sem muita inspiração para me vestir. Abri todas as portas do meu armário, olhei, pensei. Sabe aqueles dias em que só queremos renovar todo o nosso guarda-roupa? Me deu um desânimo mesmo. E acabei optando por uma camiseta branca, básica, e uma calça preta. Sapatilhas pretas. Look mais sem graça não havia. Mesmo assim, ainda troquei de blusa duas vezes, por outras duas brancas. E básicas. Continuava insatisfeita, achando que o dia estava perdido. Pouco antes de sair, ao fechar as portas do armário, vi a pequena caixinha preta num canto da prateleira, estrategicamente disposta mais à frente, para não ser esquecida. Era o meu colar adormecido, pronto para despertar. Tirei-o da caixa, desenrolei-o cuidadosamente e dispus sobre a blusa branca, dando o charme que eu queria ao visual.

Combinou perfeitamente, equilibrando o preto e branco com os tons cinzentos, com destaque para a continha dourada que praticamente somente eu via. Me senti toda paramentada, um pouco over. Mas por que não me dar a chance de me enfeitar um pouco mais, homenagear a minha mãe e, afinal, também despertar.

Saí do quarto um pouco desconfiada. Não gosto de chamar a atenção. Envolvidos na correria matinal, ninguém reparou. O marido, atento ao mínimo detalhe, não percebeu. A filha caçula, sempre a primeira a observar a cor do esmalte, a blusa nova, o corte de cabelo, não viu. A mais velha, crítica ao extremo, não falou nada. É... minha mãe teria razão ao comentar: “Nem uma corzinha, minha filha?!” Talvez fosse discreto demais.

Mesmo assim, meu dia se tornou melhor. Comprovei o que minha mãe, sem dizer, sempre quis me ensinar: que um simples colar muda a nossa disposição, nos faz sentir especiais e mais bonitas, nos dá alegria e confiança. É mágico.

Envolvida pelo trabalho, nem me lembrei mais da arma poética que estava no meu pescoço, mas a energia que exalava daquelas bolas transformava a vida, dando a ela um toque de encantamento discreto, quase secreto.





segunda-feira, 13 de abril de 2020

O som do silêncio




Golfinhos resolveram dar o ar da graça na costa de Nápoles.
Baleias tomaram conta do Estreito de Messina, entre a Itália e a Sicília.
Uma família de patinhos têm sido vista passeando pelos jardins do Vaticano.
Os pássaros tomaram conta da cidade de Roma; sua cantoria estridente preenche a casa quando se abre a janela.
Uma fina camada de grama está crescendo entre as pedras da Piazza Navona. 
As águas dos canais de Veneza estão tranquilas e cristalinas, espelhos de seus palazzos e ruas vazias.
O Papa, sempre com a fisionomia cansada e tensa, agora tem aparecido tão mais descansado, tão mais sereno e calmo...

Muitas belezas se tem visto no mundo atualmente, mas o que mais me impressiona, a ponto de me fazer chegar às lágrimas, é o silêncio. Sim, o silêncio... 
Prezo tanto por ele... O procuro tanto a cada minuto da minha vida... Geralmente só o encontro, ou tenho a impressão de encontrá-lo, no minuto seguinte a que entro na casa absolutamente vazia. Fecho a porta, pouso as chaves sobre o aparador, fecho os olhos por um segundo, respiro fundo e aproveito aqueles segundos sagrados de silêncio... Depois eu mesma me movimento pela casa e faço algum barulho, ouço os passos do vizinho de cima, a televisão alta no apartamento ao lado, as buzinas lá fora, a movimentação no corredor e caio na real: o silêncio não existe.
Mas agora sim... É possível andar pela cidade e ouvir o silêncio.
Se pudesse, sairia por aí à sua procura. Caminharia pelas ruas menos comerciais (prefiro sempre esses caminhos), chegaria até o rio, pararia sobre a ponte, bem no centro, e ficaria ali por algum tempo, olhando as águas do Tevere, pensando sobre para onde nos levarão esses caminhos aquosos. Seguiria rente ao rio até chegar próximo ao Castel Sant’Angelo, em frente àquelas barraquinhas que vendem souvenirs. Elas estarão fechadas, não haverá vendedores nem turistas, mas, não sei por que, as árvores ali são mais bonitas, elegantemente debruçadas sobre o rio, fazendo-lhe reverência. Sento-me num dos banquinhos e me deixo ficar, escutando o silêncio e apreciando o balanço das folhas. 
Há um ponto específico da ponte Umberto I de onde se tem a vista perfeita da Igreja de São Pedro. Era pra lá que eu me dirigiria. E me deixaria ficar, olhando ao longe a cúpula em simetria, sem ninguém a esperar ansiosamente para ocupar o meu lugar, o ponto mais desejado. Não contente com a distância, me dirigiria à Piazza São Pedro, caminhando lentamente, respirando fundo, sentindo o vazio que me permite pertencer verdadeiramente ao ambiente. Atravessaria a rua tranquilamente, sem disputar os milímetros entre as pessoas. E de longe veria a igreja, imponente, deslumbrante, emoldurada pelo entardecer, a me receber de braços abertos. A aproximação é lenta como o caminhar, e a chegada é mesmo um abraço tranquilo, reconfortante, caloroso. Tudo isso devido à aura do silêncio... Sim... o silêncio tem aura. Uma luz brilhante, vivaz e energética que o rodeia e nos enche de uma energia vital impressionante. Acho que naquela praça, rodeada de silêncio, eu não resistiria e dançaria. Dançaria ao som do silêncio...
Depois, restaurada e extasiada, eu andaria e andaria pela cidade, passeando sozinha pelas ruelas do Centro Histórico, observando os palazzos, as igrejas, as fachadas dos museus e, claro, fotografando cada detalhe... O sonho do fotógrafo, mesmo o amador como eu, é fotografar a cidade vazia, sem turistas, sem carros passando. Muitos acordam de madrugada para chegar antes de todos e encontrar a situação ideal para a foto perfeita. Agora eu o faria a qualquer hora do dia. Ninguém me observaria, ninguém me olharia com curiosidade e desconfiança pensando: Por que diabos ela está tirando foto dessa porta velha e sem graça? E eu poderia focar no desenho daquela rachadura milenar, da qual brota uma pequena folha verde claro. Haveria sim algum ruído: um vizinho que conversa, da janela, com o morador da frente, uma mamma italiana que grita com o bambino, a sirene abafada de uma ambulância que passa veloz ao longe, os acordes de ‘Volare’ soando na vitrola... Mas esses sonidos não roubariam a beleza desse momento de paz e solidão.
Nesse dia, eu voltaria pra cada feliz, porque teria procurado e encontrado o tão desejado silêncio. Entre as multidões, eu pareço andar sempre em fuga, acelerada. No vazio, me sinto bem, minha respiração se torna mais lenta e completa, encontro uma paz tranquilizadora. 

Além desses acontecimentos simplórios do mundo quotidiano – possíveis apenas no sonho e na imaginação –, um outro não tão singelo - e verdadeiro - me impressionou: Andrea Bocelli cantando sozinho na Catedral de Milão absolutamente vazia. Meu Deus! Que beleza! Em meio à solidão e ao vazio, a grandiosidade da Catedral se faz ainda maior. O colorido de seus altos vitrais torna-se mais intenso. As estátuas parecem balbuciar algum segredo. E a voz do Bocelli cantando Ave Maria trespassa as paredes robustas antiquíssimas, ecoando até o infinito. Em um determinado momento, surpreendendo a todos, ele começa a caminhar pelo longo corredor central, em direção à porta de entrada. Esse homem saramaguiano – cego, mas lúcido – traça sem hesitar o caminho que parece sem fim, vai até a porta e, atravessando o portal, defronta-se com o espaço gigantesco todo para ele, pronto para receber a sua divina voz. Diante da praça dabsolutamente vazia, do espaço monumental, do pátio que ainda está se acostumando à sua novíssima realidade, ele canta, canta alto, projeta sua voz sobre o vazio. E o mais absolutamente extraordinário é que, mesmo com o tenor cantando a plenos pulmões, tanto dentro da igreja quanto fora, não se rompe o silêncio. É pleno. 
O silêncio do atual momento em que vivemos parece tão significativo que resiste ao mais belo canto. No mundo pandêmico, som e silêncio tornaram-se irmãos. 

quarta-feira, 25 de março de 2020

2020: O ano que não começou





No último dia do ano, a animação toma conta de todos, no mundo todo. É tempo de celebrar, encontrar os amigos, dar boas vindas ao ano que se inicia. Festas, champagne, fogos de artifício. Quem não ama?!
Eu! 
Eu não amo o Reveillon! Mais do que isso: eu não gosto mesmo! Nunca gostei. Já passei essa data com a família próxima, com a família extensa, com os amigos, sozinha em casa com o marido, em Copacabana, em Nova York, na praia, na cidade... Não adianta. Talvez por gostar tanto do natal eu odeie o ano novo. Sinto uma angústia, um desconforto, uma estranheza, uma leve tristeza, não só no último dia do ano, mas também nos primeiros dias do ano que se inicia. 
Sempre foi assim, mas acho que eu tentava esconder isso de mim mesma. Eu sempre minimizava meu sentimento e me esforçava para aproveitar o dia como todo mundo. Em 2019, porém, prestes a completar 45 anos, não sei por que, uma luz se acendeu e de repente, pela primeira vez na vida, me dei conta realmente de que não gosto dessa data. Tive consciência plena disso e não só internalizei esse sentimento como o expressei. No café da manhã do dia 31, revelei para o marido e as filhas a minha grande descoberta: tá bom, eu prepararia o arroz com lentilha, eu brindaria com champagne, eu cantaria o adeus-ano-novo-feliz-ano-velho, mas, após quase meio século de existência, tinha realmente descoberto – Eu Não Gosto de Ano Novo!! 

Ah... a força da palavra... 

Acordei no dia seguinte, abri os olhos e tudo parecia normal. O celular indicava a fantástica data do primeiro dia do ano. As notícias de jornal eram velhas. Só se ouvia o silêncio lá fora. Começou a chatice: nada de novo... no ano novo... Odeio as listas de resoluções típicas dessa época, mas não resisti. Peguei o caderno novo de capa verde e escrevi algumas intenções para o ano que se iniciava: 

-     ler finalmente aqueles clássicos nunca lidos (não passam deste ano!)
-      um minuto de plank (um tipo de abdominal) por dia antes do banho (dizem que, quando se quer adicionar um novo hábito à rotina, deve-se associá-lo a um outro hábito já adquirido – por isso as abdominais antes do banho...)
-      óleo de coco no rosto todo dia antes de dormir por um mês (dizem que faz milagres!)
-      voltar a acordar mais cedo para meditar por meia hora que seja (o dia sempre começa melhor com esse momento de silêncio e introspecção)
-    encontrar uma aula de kundalini yoga (minha prioridade este ano, mesmo que seja longe de casa)
-      usar menos o smartphone (já baixei o app que avisa quando passamos dos limites)
-      comer "mindfull" (colorido, saudável, sem olhar o celular, mastigando bem e saboreando os alimentos)
-      e por aí vai...

Nossa, eu não gosto de ano novo, mas este 2020 promete... 
Depois do almoço deste mesmo dia, após insistir na lentilha que ninguém mais tinha comido na noite anterior, sinto um leve mal-estar. Putz! A velha dor de cabeça vem aí... Não aquela dor forte e insuportável que me leva pra cama durante dois dias, mas aquela dorzinha chata, que dura dias, incomoda, limita e deixa os nervos à flor da pele. 
Para as pessoas de sorte que não conhecem o cabuloso mundo das enxaquecas, isso parece não ser nada. Já quem conhece sabe que essa pequena dor, essa dorzinha que é considerada por muitos frescura (até pelas pessoas que você mais ama) limita muito a vida quotidiana. A gente até se levanta de manhã, toma café, dá beijo nos filhos, leva na escola, ri, mas sempre que pode procura um lugar pra recostar a cabeça (o vidro da janela do carro, a mesa da cozinha, a parede do banheiro, as próprias mãos) pra ver se alivia um pouco. 
Decido iniciar os meus projetos de leituras. A primeira meta do ano é reler Crime e Castigo, de Dostoiévski. Sempre me animo a pegar um livro novo e me aventurar nas suas primeiras páginas, mas não consigo me concentrar. Isso já aconteceu antes, claro! Mas dessa vez tento várias vezes, durante alguns dias e não consigo passar da segunda página. O início de um clássico que já é um pouco mais denso torna-se muito pesado para uma mente dolorida. Tento o livro sobre o Machado escrito pelo Drummond (Uau!!), e nada... Contos, crônicas, poesia são mais leves, mas os meus escritores favoritos não querem dialogar comigo neste momento. Qualquer tentativa é inválida. O pensamento está sempre acelerado, não consegue focar...
Tento a meditação. Essa vai limpar minha mente, me fazer me sentir melhor e me ajudar a me concentrar nos meus projetos. Escolho um lugar calmo, monto um pequeno altar, coloco meu mantra preferido, sento-me em posição confortável, foco na respiração, lenta e profunda e... Nada... Doem-me as costas, a respiração está acelerada e só me vem a imagem da dor, irônica, sarcástica, rindo de mim. O incômodo, a sensação de mal-estar é permanente. 
Esforço físico de qualquer tipo torna-se um martírio. Mesmo a yoga, que para muitos é remédio pra dor de cabeça, no meu caso só piora. Se tiver que colocar a cabeça pra baixo então... Nem pensar! 
Durante as crises de dor de cabeça, os aromas, mesmo os mais suaves, incomodam muito. Isso significa que minha rotina de beleza com óleo de coco dura apenas um dia. Não suporto o cheiro adocicado, e a textura oleosa no rosto me dá agonia. Alimentação saudável? Foi totalmente esquecida porque o enjoo me faz ter vontade de comer só cream cracker. Até alguns velhos hábitos, como as aulas de italiano, caminhadas e as aulas de yoga ficam em suspenso. 
Me sinto frustrada. Os primeiros dias de janeiro já vão longe e ainda não entrei na rotina nem coloquei em prática nenhum dos itens da minha lista. Nos momentos em que a dor parecia cessar, eu ficava eufórica, animada pra finalmente reiniciar, mas depois o incômodo voltava, e tudo ficava parado novamente. 
No final desse janeiro perdido, fui a um neurologista. Mais um... Ele me receitou um remédio novo (sim, já tentei muitos!), aparentemente sem nenhum efeito colateral, perfeitamente indicado para o meu perfil. E ainda me ajudaria a dormir melhor. Maravilha, afinal a enxaqueca crônica também prejudica muito o sono. Ahã... sim... Perfeito! Que maravilha poder finalmente começar o ano, me sentir bem, acordar descansada, retomar minhas atividades, apreciar coisas simples, como o sabor do café pela manhã.
No início de fevereiro, comecei o tratamento. Com o primeiro comprimido, me senti meio sonolenta, com o segundo veio uma leve tontura, com o terceiro a tontura piorou, com o quarto minha língua já não se mexia e parecia do tamanho de um boi e eu já não conseguia me levantar da cama. Pronto! Planos adiados mais uma vez... Claro que não tomei mais o maldito remédio, mas levou pelo menos uns quinze dias até que os efeitos dos míseros quatro comprimidos diminuíssem e eu voltasse a me sentir normal novamente. Normal = com aquela leve dor de cabeça...
Um dia, disse pro marido: Quer saber? Minha realidade é essa; tenho que aprender a conviver com essa dor. Vamos lá tentar ver as coisas positivas e começar o ano de vez. Crianças na escola, marido no trabalho, o sol brilhando lá fora em pleno inverno. Volto às caminhadas, às aulas de italiano, a geladeira está cheia de comidas saudáveis. Contacto uma professora e finalmente agendo uma aula de kundalini. Tudo encaminhado! Finalmente 2020 vai começar. Com um certo atraso, mas tudo bem. Minha simpática professora de italiano comenta que, para a sua nonna, o ano só começava mesmo em março. Vê?! Nós, brasileiros, também não começamos pra valer só depois do carnaval?! Pois é... Tá valendo...
No fim de semana, saí com a filha pequena pra dar uma volta no bairro. Dia lindo! Céu azul, sol reluzente, temperatura agradável, tarde perfeita pra um sorvete na sorveteria preferida. Ainda na fila, vejo um cartaz divulgando o chocolate quente, feito com chocolate ao leite, uma raridade na Itália, porque aqui geralmente é com chocolate amargo, e não gosto. Não resisto e, na sorveteria preferida da vida, num lindo dia de sol, perfeito para um gelato, pedi a tal chocolata calda. Sentamos no banco da praça em frente, a filha com seu sorvete de stracciatela, eu com o meu copo fumegante (que ainda vinha com dois biscoitinhos), e me deliciei com a cremosidade e o adocicado da iguaria, chegando a comentar: o melhor chocolate quente que tomei na vida. Resultado: o tal me fez mal, tão mal, me deu uma indisposição estomacal tão forte que passei dois dias de cama, o marido tendo que levar e buscar as crianças na escola, os compromissos todos adiados, a aula de yoga cancelada... 
Mais uma semana de suspensão... do ano... da vida. 
Quando começo a melhorar, recebo uma comunicação da escola dizendo que, devido ao coronavírus, as aulas estão suspensas durante uma semana. O quê?! Vou ter de cancelar minha aula de kundalini de novo?!?! Paciência... paciência... É só por uma semana... Afinal, esse vírus é só uma gripe, não é mesmo? 
Depois de uma semana, o governo italiano decide fechar todas as escolas da Itália, depois resolveu fechar os museus e monumentos históricos, depois as igrejas foram proibidas de celebrar missa, as aulas nas academias foram canceladas, os restaurantes e cafés e salões de beleza fecharam as portas, as igrejas também estão fechadas. Pra completar, proibiram as pessoas de saírem às ruas, por tempo indeterminado.
Estamos todos trancados em casa (pior, no apartamento), o país está parado, as ruas, sempre repletas de turistas, estão desertas, e não há perspectiva de melhora.

Ah... a força da palavra... 

Foi com tanta certeza que resolvi contrariar a chegada do ano novo que até me sinto culpada. 
Quem sou eu pra comandar o tempo? Mas o ano de 2020??? Ah... esse? Posso garantir que este ano ainda não começou. 








domingo, 3 de junho de 2018

O voo do bordado





Malas prontas: coração apertado.
Em poucos minutos, sai o carro que me levará novamente para longe do meu país, da minha família, da minha mãe.
Respiração acelerada, mãos frias, nervosismo, ansiedade. Verifico que nada está ficando pra trás, dou as últimas ordens às meninas e me sento à mesa, ao lado de minha mãe. O momento deveria ser só de espera. Faltam poucos minutos para a hora combinada. Poucas palavras, apenas perguntas retóricas para romper o constrangimento do silêncio.
De repente, aparece minha irmã, carregando umas pastas enormes, cheias de papel. Ela se senta, arrasta a toalha do café para o lado, espalha as pastas por quase toda a mesa, as abre devagar e começa a tirar, um a um, vários, muitos papeis de seda, com riscos de bordado.
Penso no quão inapropriada era aquela atitude. Eu, prestes a ir embora, para bem mais longe do que o costume, sem saber quando voltaria, e ela já preocupada com as coisas dela, com providências a tomar, com um futuro próximo que de maneira alguma me incluiria. Sinto como se ela estivesse antecipando a minha partida.
Lentamente, minha irmã tira os papeis de seda das pastas e os vai colocando ao lado, sobre a mesa, à medida que vai tecendo alguns comentários. Alguns são pequenos, de um palmo, outros bem grandes, enormes, dobrados em dois ou em quatro. Uns desenhados apenas a lápis, outros reforçados a caneta, quase sempre azul. A maioria em preto e branco, mas alguns bastante coloridos.
Flores, muitas flores, das mais variadas espécies. Grandes, exuberantes, aglomeradas. Outras pequeninas, delicadas, simples, solitárias. Frutos e frutas também. De vez em quando brota, do meio daquele jardim, um utensílio de cozinha, um bule, uma xícara de chá. Ou alguns passarinhos, que parecem querer voar, se libertar.
Eu não consigo tirar os olhos da cena à minha frente, daquele movimento lento e contínuo do passar das folhas de seda, bem devagar, da esquerda para a direita, conduzidos pelas mãos pequenas e alvas da minha irmã, numa espécie de dança. O abrir e fechar das folhas de papel finíssimas, levemente transparentes e delicadas, é como o abrir e fechar das asas de pássaros. Pássaros brancos, de asas tênues e maleáveis, que se abrem e se fecham, se abrem e se fecham, se abrem e se fecham, devagarinho. Pássaros lá longe, bem no alto, dando a quem de baixo os observa a ilusão de que estão voando muito mais devagar no céu azul, deslisando sobre o infinito, para depois pousar no espaço ao lado, em busca do descanso merecido.
Minha visão se torna turva, envolvida pela transparência do papel de seda em movimento lento e pela dança suave das mãos da minha irmã. Meus olhos, fixos no que está a se passar ali à frente, abrem-se e fecham-se lentamente, as pálpebras pesadas, um peso gostoso, como quando estamos vendo um filme bom, mas o sono insiste em nos dominar. Pálpebras-pássaros. Pálpebras-asas. Abrindo-se e fechando-se lentamente. 
A voz macia da minha irmã, o falar igualmente lento, além do silêncio da minha mãe, tudo isso modifica o ritmo do meu pensamento, me conduzindo a uma espécie de transe. Não estou mais ali, sentada na sala que seria em minutos o meu ponto de partida. Não. Agora estou em processo de voo, a voar bem alto, no ritmo das asas alvas e calmas daqueles pássaros de papel. 
Devem ter-se passado uns três minutos, mas parece que foi uma manhã inteira de voo. Quando meu irmão buzina lá fora, acordo do transe. Não assustada, mas tranquila. É hora de ir embora... mas eu, que, minutos atrás era uma pilha de nervos, agora me sinto tranquila, em paz.
Para não perder o costume e para disfarçar o choro, antes de iniciar as despedidas, reclamo com minha irmã que ela já fez bordados para um monte de gente, de fora e da família, mas nunca bordou nada para mim.
Pois ontem, depois de cinco meses, chegou em minha casa, num país distante, uma caixa dos Correios brasileiros. Abro ansiosa e lá dentro estão, como em um ninho, duas toalhas bordadas por ela, especialmente pra mim.
Branquinhas... alvas como as pombas da paz... macias... cheirando a sabonete... o crochê – só o crochê – cuidadosamente engomado... Ao centro, o bordado de uma rosa cor de rosa intenso que acabou de desabrochar, no auge da sua beleza e vitalidade, meio tombada para o lado, num jogo de claros e escuros, sombras e luzes, folhas verdes a emoldurar.




Fico ali parada por alguns minutos a observar: a maciez do tecido, a textura dos pontos meticulosamente lavrados, a perfeição do avesso... E eu, que pensava não fazer parte do futuro da minha, me dei conta de que ela dedicou horas dos seus dias a mim, escolhendo a toalha, elegendo as cores, separando as linhas, passando o risco, bordando cada ponto cuidadosamente, crochetando, lavando, engomando, até chegar a hora da despedida. Sim... porque também há que se desapegar do bordado, que levantará voo, viajará por dias até vir pousar aqui ao meu lado, agora, trazendo um sentimento de amor, cuidado e pertencimento de que o coração precisa para seguir voando.
Obrigada, minha irmã. Te amo!





domingo, 13 de agosto de 2017

Se podes ver, repara!



Passei muitas vezes em frente a essa casa abandonada no centro histórico de Assunção, no Paraguai. A construção bastante deteriorada me chamava a atenção devido a um fato inusitado: na sua lateral, nasce uma árvore. Das entranhas das paredes trincadas, descascadas, maltratadas pelo tempo, brota o tronco, vivo, vivíssimo, já adulto, que vai subindo parede afora, até o topo, onde a copa aflora sobre o telhado, dando um show de deslumbre e demonstração de força da natureza. 
Tentei por tudo neste mundo fotografar essa parede-árvore, árvore-parede. De perto, de longe, do outro lado da rua, na ponta dos pés, quase deitada na calçada... Celular, câmera velha, câmera nova... Nada! Nenhuma foto faz jus ao que se vê quando se passa. 



Um dia me dei conta de que, aficcionada pela árvore, nunca tinha tido a curiosidade de olhar o outro lado, aquilo que estava escondido depois da curva da esquina, na verdade a fachada principal da casa.
A primeira reação foi o susto, tamanha a beleza da construção! Chega até mesmo a ser difícil olhar. É preciso afastar-se, ir ao outro lado da rua para obter uma visão geral. Então se vê. O  número é o 592, impresso duas vezes na porta e, para não restar dúvida, uma vez mais na parede. A cor, meio amarelada - nem amarelo nem mostarda nem creme - transmite uma sensação de paz e tranquilidade, um pouco prejudicada por algumas pichações sem sentido. A forma retangular revela uma estrutura simétrica: ao centro, a porta altíssima, imponente, de madeira, coroada por uma estrutura oval de ferro que deixa entrever a escuridão lá dentro; duas janelas médias de cada lado, com suas respectivas varandinhas, provavelmente apenas estéticas, pois muito estreitas. Na calçada à frente, entre a porta e a primeira janela à esquerda, magnânimo e elegante, um ipê, conhecido na região como lapacho. O tronco, que se bifurca bem embaixo, divide-se em dois um pouco mais finos, os quais vão subindo levemente na diagonal, para só depois, bem em cima, abrir-se em galhos ainda mais delgados, agora com folhas rareadas pelo inverno, mas no auge de sua floração cor-de-rosa. 
Bem no canto à esquerda, como parte da própria casa, mais ou menos na altura das janelas, uma floreira! Um vaso de flor de cimento, um pouco escurecido pela umidade, ali inserido, cuidadosamente. Não sei como alguém poderia alcançá-lo para dispor ali alguma planta, mas o maravilhoso ipê, consciente dessa quase impossibilidade, trata, com a ajuda do vento, de fazer passear por perto suas flores rosadas, lembrando essa antiga peça da sua utilidade original.



Um outro pormenor, porém, apenas me foi possível com a ajuda do zoom da minha câmera fotográfica. Esse instrumento poderoso me permitiu reparar no detalhe para mim mais precioso da casa número 592. No topo, no alto mais alto da casa, bem no meio de uma espécie de armação arredondada, encontra-se, pequenina, uma delicada e simpática conchinha do mar. Parece banal, mas a beleza e a falta de entendimento quase me levam a perder o ar. Como pôde alguém, ao projetar ou construir essa casa, ter o cuidado de colocar um enfeite tão pequeno ali, tão distante do olhar dos transeuntes? 
Tendo como cenário o azul claro e translúcido do  céu de inverno, as folhas daquela mágica árvore, suas florezinhas rosadas e os cabos de eletricidade que desajeitadamente passam por ali, lá está ela, levemente carcomida pelo tempo, talvez pelo movimento de pássaros, escurecida pelo mofo nas curvas menos expostas ao sol, mas com seu estilo e delicadeza preservados, quase um brinquedo de menina, um talismã, um enfeite para colocar no cabelo. E por que justo uma concha, símbolo da fertilidade feminina, da fecundidade, lembrança de mares e oceanos? O significado de prosperidade talvez me faça mais sentido, dada a localização outrora nobre. Imagino que milhares de pessoas passaram por este lugar inúmeras vezes, durante anos, séculos até, e nunca repararam… 
Sábio José Saramago, que, em seu livro Ensaio sobre a Cegueira, afirmou: "Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara." Não basta olhar… é preciso ver com mais atenção. Não basta ver… é imprescindível reparar! Não fosse o meu olhar atento, e nesse caso incentivado pelo fotográfico, esse detalhe teria passado despercebido, e eu não teria tido o prazer de apreciar essa fazedora de pérolas, escondida no alto de uma linda casa antiga abandonada em uma rua do centro de Assunção. 

P.S. Foi justamente esta foto, a da pequena conchinha (exposta no topo desta página), a que escolhi para me representar na exposição final do meu Curso Básico de Fotografia no Instituto de la Imagen, cujo tema foi "Imágenes de Asunción". Talvez ela não seja tão óbvia, pois não representa uma cena facilmente reconhecível como asuncena. Não é o rio. Não é a rua. Não é o homem. Não é o tererê. Não é o ñaduti. Mas representa o meu olhar sobre a cidade. Para mim, é necessário praticamente afastar com as mãos os cabos de energia em excesso (e a poeira, e a poluição, e a sujeira, o trânsito caótico e agressivo, a falta de manutenção e organização, os serviços muitas vezes precários e imperfeitos), pedindo-lhes licença, para ver as flores dos lapachos, o céu azulíssimo do verão, o nascer e o pôr do sol laranja-avermelhados, as casas e edifícios antigos, a arborização intensa superverde, as pequenas flores que brotam acidentalmente na calçada, algum trabalho quase artístico escondido nos muros envelhecidos, o sorriso do menino no sinal de trânsito, a poesia da cidade enfim.... Para aquele que passa e olha sem reparar (na maioria das vezes nem olha), as conchinhas delicadamente dispostas no alto dos edifícios simplesmente não existem... E nesse passar apressado, nublado, muitas vezes cego, a vida perde em beleza, em suspiros, em sentido.