terça-feira, 22 de abril de 2014

As havaianas de Saramago

Caetano Veloso, José Saramago e Jorge Amado
   
A fotografia acima, que encontrei recentemente ao vasculhar o blog da editora Companhia das Letras, me causou muita impressão. Tirada em 1996, na Bahia, na casa do cantor Caetano Veloso, ela registra um de muitos encontros desses dois mestres da literatura universal, José Saramago e Jorge Amado. Mas não só isso: revela, nos detalhes, o encontro de dois países, de dois continentes, de uma maneira muito peculiar.
O encontro dessas três figuras tão populares, a presença de Caetano, a vinda de Saramago para o Brasil e o fato de ele curtir uma tarde de verão na companhia de amigos, nada disso me surpreende, afinal esses três homens, ao contrário do que parece, têm muito em comum. Seus nomes, suas faces, suas obras são reconhecidos em qualquer lugar. Viajaram o mundo como missionários, pregando a língua portuguesa por toda a parte. Dedicaram suas vidas à arte, à literatura, registrando e exaltando a identidade e a autenticidade de seus países de modo especial.
Na verdade, o que mais me chama a atenção e até mesmo me intriga na foto são as havaianas de Saramago.
Esse homem, sempre visto de terno e gravata, no máximo com camisa social de manga comprida, de porte altivo e respeitável, sempre sério, apresenta-se nessa foto de camiseta, bermuda, braços e pernas desnudos, usando o calçado que simplesmente é a cara do Brasil - as ha-vai-anas! Nem eu, que sempre o persegui por todos os cantos, jornais, televisão e filmes, jamais o tinha visto em tais trajes. 
E a postura, o jeito largado? Os braços apoiados sem cerimônia alguma no ombro de Jorge e de Caetano, as mãos relaxadas. Deixa-se estar, sem esforço, levemente, num à vontade impressionante. As pernas meio cruzadas, um pé atrás, o outro mais à frente, a brincar com os chinelos, que deixam os dedos à mostra, relaxados, livres. O corpo todo entregue, meio que em movimento, quase a balançar se comparado com os outros dois.
É como se Saramago estivesse mais à vontade do que os anfitriões. A bermuda meio amarrotada, contrastando com a combinação perfeita e elegante das roupas dos baianos. Não posso deixar de pensar que talvez esses dois tenham se esforçado para se tornar mais formais, dada a ilustreza do hóspede, e que o outro tenha feito um esforço ainda maior para parecer descolado, dada a descerimônia dos anfitriões.
Esta foto, para mim, simboliza a concretização do ideal saramaguiano narrado em A Jangada de Pedra. Nessa obra, o autor narra uma peregrinação mágica da Península Ibérica pelo Oceano Atlântico, em direção à América Latina. Para Saramago, Portugal e Espanha se identificam muito mais com seus irmãos latinos do que com a Europa, que constantemente lhes vira as costas, cultural, política e economicamente. Enquanto se dá essa viagem fabulosa, os dois países, representados por seus territórios e pelas pessoas que neles vivem, vão se transformando paulatinamente, se preparando para o novo que está por ser (re)encontrado. 
O Saramago de havaianas é um desses homens ibéricos que vêm ao Brasil. Sabemos que ele, em seu íntimo, é mais formal, mais sisudo. Fala um português de pronúncia mais fechada, escorreito. Porém, entre aqueles dois representantes de peso da cultura brasileira, muda um pouco, tenta se adequar. A recíproca é verdadeira: quem estava aqui à espera também tem de se preparar um pouco para a recepção. 
Tudo isso faz mais sentido se pensarmos no quanto a obra de Saramago é bem aceita no Brasil - sem as amarras das divergências políticas, sem a seriedade nas interpretações, com essa mania que temos de estampar as frases mais difíceis e complexas na camiseta e torná-las mais simples, mais nossas. Lemos os seus escritos justamente da maneira como ele se apresenta na foto acima: sem terno e gravata, usando chinelos de dedo. Ao usar as havaianas para ir ter com Jorge Amado e Caetano Veloso, Saramago se entrega, se doa, se desprende da sua formalidade para dizer: "estou aqui", "sou um dos vossos", "falo a vossa língua", "obrigado". 

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