Heterônimos de Fernando Pessoa, Lívio de Morais |
Não
bastasse Fernando Pessoa ser um dos maiores poetas de todos os tempos, ser, além dele próprio, vários outros, ter oferecido à humanidade alguns
dos mais belos poemas já escritos, ter elevado a língua de Camões a um nível jamais imaginado, tocar nossos corações e nossa alma com sua poesia, ser porta-voz dos lusófonos apaixonados e indignados espalhados pelo mundo – como se
tudo isso fosse pouco, ele ainda nos reservou surpresas inacreditáveis.
Recentemente, quase 80 anos após a sua morte, foi anunciada a descoberta de
mais cinco poemas inéditos de Pessoa, que, juntamente com outros textos pouco conhecidos, deram origem ao livro Mensagem e outros poemas sobre Portugal. A publicação será lançada esta semana, em Portugal, pela editora Assírio e Alvim (da qual eu gostaria de ter simplesmente todos os títulos, sem exceção).
Segundo os organizadores, Richard Zenith e Fernando Cabral Martins, os poemas datam do ano de 1906, e o que os fez se convencerem disso foram o tipo de papel
utilizado, a caligrafia e o fato de estarem misturados a textos
seguramente desse período.
Essa dedução representa uma grande descoberta porque ela modifica a data
em que Pessoa começou a escrever oficialmente em português. Criado na África do
Sul, seus primeiros textos foram escritos em inglês, tendo ele antes escrito em
português apenas eventualmente, quando em viagem a Lisboa (e, mesmo assim, textos
para circulação apenas em família). Até a semana passada, pensava-se que os primeiros poemas em português tinham surgido apenas com a vinda
definitiva para Portugal (em 1908), mas os
recém-descobertos poemas mostram que isso aconteceu dois anos antes.
Uma
outra conclusão importante a que se chega é a de que Pessoa,
que, aos 17 anos, parecia totalmente alheio à vida portuguesa, na verdade já se
mostrava bastante crítico em relação ao seu país, mostrando um tom indignado em
relação à monarquia portuguesa e ao cenário político da época. Os poemas chegam
mesmo a ser panfletários, dirigindo-se à sociedade portuguesa em tom apelativo. Em um poema inacabado, reivindica: “Abaixo a Guerra, a
tirania;/ Abaixo os reis, morra a Igreja.”; e em outro: “Com o governo que
temos e o nosso rei/ Somos um carro já sem rodas.”
A descoberta desses poemas inéditos escritos por Pessoa me fizeram lembrar que um dos fatos que mais me impressionava quando estudei literatura em Lisboa foi justamente o tal “espólio de Pessoa”, considerado "tesouro nacional". Falava-se muito desse baú mágico, repleto de
manuscritos, cartas, anotações, cadernos, objetos. Nem sei se era uma baú de verdade, mas gosto pensar assim.
Isso mexia com a minha imaginação. Entrar na Casa Fernando
Pessoa, perto do local onde eu morava, ver lá seus humildes pertences, a cama onde faleceu, a escrivaninha na qual ele compôs alguns dos poemas mais belos, a estante com seus livros, passear pelas ruas do Campo de Ourique e por todos os outros lugares por onde ele andou, tudo isso já era fascinante. Imagine então ter acesso aos seus escritos? Qualquer amante da literatura sonha ter uma oportunidade como essa, mergulhar nesse tesouro. E quem se presta a vasculhá-lo e a analisá-lo com cuidado tem a chance de descobrir mais uma raridade. Um olhar atento sobre o seu baú pode dar novo sentido ao que antes talvez tenha sido negligenciado por outros estudiosos.
Dizem que existiram precedentes e, de fato, outros antes de Pessoa escreveram sob pseudônimos ou criaram heterônimos, mas com a intensidade com que Pessoa o fez não. Ao todo, além de Álvaro de Campos, Ricardo
Reis, Alberto Caeiro e Bernardo Soares, foram 73 personagens fictícios e heterônimos criados por ele (Veja a lista aqui). Muitos desses, além de terem suas próprias obras literárias, tinham vida própria, nacionalidade, endereço fixo, características físicas e psicológicas bem definidas. E alguns deles ainda se correspondiam entre si. Qual outro escritor no mundo todo atingiu esse nível de complexidade?
Exatamente por tudo isso é que ainda é possível reinventar Pessoa, encontrando novas informações sobre ele e textos inéditos por ele escritos. E assim sua biografia vai sendo até hoje reescrita, sua obra sendo reconstruída, e o meu sonho de descobrir esse tesouro encantado sendo sempre alimentado.
Exatamente por tudo isso é que ainda é possível reinventar Pessoa, encontrando novas informações sobre ele e textos inéditos por ele escritos. E assim sua biografia vai sendo até hoje reescrita, sua obra sendo reconstruída, e o meu sonho de descobrir esse tesouro encantado sendo sempre alimentado.
PS: Obviamente, há uma biblioteca bastante extensa sobre a obra de Pessoa, mas, para uma leitura fluida e prazerosa sobre a vida e obra desse poeta, recomendo o livro Fernando Pessoa: uma (quase) biografia, do brasileiro José Paulo Cavalcante (Editora Record). Nessa
obra, fruto de um trabalho de pesquisa incansável, o autor escreve uma possível biografia de Fernando Pessoa, mesclando fatos reais e a obra literária, nos levando a uma imersão no mundo pessoano de tal maneira que não mais sabemos diferenciar o que é real do que é poesia.
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