sábado, 22 de fevereiro de 2014

Dois livros, duas cidades



Li em algum lugar que é preciso dar à cidade de Nova York pelo menos cinco anos para que ela o aceite, lhe permita fazer parte dela, ser quase um nova-iorquino. Morando aqui há menos de dois anos, ainda me encontro em uma espécie de limbo: não sou local, não sou turista. Quem sou, afinal?
Nessa busca por algum sentimento de identidade e confiante na capacidade salvadora da literatura, me aventurei na leitura de dois livros escritos na cidade, sobre a cidade, por moradores da cidade: The New York Trilogy (A Trilogia de Nova York), de Paul Auster, e Forever (Para sempre), de Pete Hamill.
A Trilogia, composta pelos livros City of Glass (Cidade de Vidro), 1985, Ghosts (Fantasmas), 1986, e The Locked Room (O Quarto Fechado), 1986, foi publicada pela Penguin Books e, no Brasil, pela Companhia das Letras. Nessas narrativas, conexas entre si, o cenário é a cidade de Nova York, cujas ruas e avenidas são percorridas de maneira incansável pelos personagens. O que mais me chama a atenção nos três romances é a releitura que o autor faz das histórias de detetive, havendo uma total desconstrução das características básicas desse gênero. No segundo livro, por exemplo, o detetive Blue é contratado para espionar um homem, Black, e, para observá-lo, aluga um apartamento em frente ao prédio onde ele vive. Black, porém, passa horas a fio escrevendo, mal se levanta para comer e, nas raras vezes em que sai de casa, limita-se a fazer pequenas compras nos arredores. Essa rotina entediante de espionagem faz com que Blue, ao olhar por horas a fio para o outro, acabe voltando-se para dentro de si próprio e comece a rever sua profissão, seu relacionamento amoroso, suas crenças, sua própria vida. Auster explora de maneira bastante criativa essa desconstrução, mesclando descrições das ruas da cidade, seus cruzamentos, edifícios e monumentos com o conflito psicológico dos personagens. 
Quando comentei, toda orgulhosa, que tinha terminado a leitura da Trilogiaminha professora de inglês, Penny, nova-iorquina apaixonada pela cidade, mostrou-se bastante intrigada, para não dizer decepcionada. Por que Paul Auster?   E me sugeriu Forever (Para sempre), de Pete Hamill. Esse é a epopeia de Cormac O'Connor, irlandês que vem para a cidade no século XVIII, no contexto de imigração massiva desse povo para os Estados Unidos em busca de sobrevivência (Sabe-se que Nova York hoje tem mais irlandeses do que Dublim, a capital da Irlanda). Uma particularidade difere esse personagem do imigrante comum: por um motivo que os leitores descobrirão por si próprios, ele recebe o dom da imortalidade e não consegue mais partir da ilha de Manhattan, onde fica para sempre. A saga de Cormac começa em seu núcleo familiar, na Irlanda, descrita de maneira sentimental e nostálgica; continua pela árdua experiência da viagem por mar até Nova York; e passa por diversos episódios da história dos Estados Unidos, como a Guerra Civil, a epidemia de cólera, a formação da República, até o ataque às Torres Gêmeas. Por meio dessa aventura atemporal, aprendemos a história da cidade, sua formação e composição, enxergamos uma Nova York jamais imaginada, muito menos glamourosa que a atual, sem os tão marcantes arranha-céus. 
O que concluir, então, dessa minha aventura literária? Paul Auster deixa claro o seu amor pela cidade, tornando-a protagonista de suas narrativas, indo a fundo em seu projeto literário de misturar o mundo interior com o exterior. Com ele, aprendi muito sobre a literatura aqui produzida. Já com Pete Hammil, do qual, confesso, quase desisti lá pela metade, aprendi mais. Por meio da epopeia fantástica de Cormac, conheci a essência deste lugar, compreendi a aura que sobre ela paira, senti o mau-cheiro de épocas passadas, passei a ouvir o sussurro de seus antepassados a cada esquina, em cada edifício, em cada árvore. Após ler Forever, ando por essas avenidas, atravesso esses parques com a sensação de que sei um segredo, daqueles  seculares, compartilhado apenas por aqueles que vivem aqui há muito tempo, há muito mais de cinco anos.
Não sei se me lembrarei dos fantasmas de Paul Auster durante muito tempo. Mas da imortalidade de Cormac  e de seus ensinamentos me lembrarei… forever!

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